Argumentos para o Projeto “Som + 1”
“A música do mundo tem entrado
pelo estreito funil do interesse mercadológico e permanece engarrafada nos
discos enfeitados de vazio sobre as prateleiras empoeiradas de mesmice.”
(Silvia de Lucca, 2009)
Pesquisas e observações revelam que o Homem continua se expressando livremente por meio da criação musical, em todos os gêneros, estilos e tendências inimagináveis, mas o público ouvinte… limitado cada vez mais às gravações (e cada vez menos à música ao vivo), e a tão pouca diversidade difundida pela grande mídia, ele perde gradativamente a liberdade de ouvir sem fronteiras, usufrui muito pouco de toda a música do mundo, apesar do ininterrupto desenvolvimento tecnológico para a comunicação, e perde na aquisição de referenciais que poderiam atender com precisão toda a necessidade, vontade e complexidade de cada um em cada momento.
* * * * *
O sistema da Indústria Cultural tem se estabelecido na linguagem musical por meio do chamado “gênero”, ou melhor, em alguns poucos deles. Ou seja, o gênero (ou “estilo” para alguns) é o objeto final da ação musical em que a limitação e simplificação (não confundir com simplicidade) que interessam a grandes e pequenos mercantilistas está traçado como ”produto”.
Via de regra isso implica em pouco gasto no fazer (ou produzir), portanto grande retorno financeiro das vendas sempre no mais alto custo possível. Entre outros malefícios para a maior parte dos músicos e ouvintes, a verba gerada por esse tipo de lucro favorece a manutenção do sistema que o propicia, obviamente, inclusive para o pagamento do velho “jabá”[1], que de tão experimentado e usual adquiriu nomenclaturas menos informais.
Entre outros, o jeito “POP”[2] de ser, ou seguir a receita de misturar sons desta e não de outra maneira, impõe circunstâncias tais que, em substituição à diversidade de inúmeros outros gêneros[3], e uma vez difundido em larga escala, determina o seguinte quadro que se imagina como padrão de nossa cultura, sem o ser exclusivamente:
- Enfatiza
e garante uma hierarquia entre os músicos que privilegia o cantor em detrimento
de instrumentistas, arranjador e compositor.
Busquem a lembrança dos gêneros ou arranjos ou linguagens em que esta hierarquia ou não existe ou está diluída e concluirão a dificuldade de encontrar. Acreditem, eles existem, mas estão fora do nosso alcance nos dias atuais, pelo menos da maioria.
- Do instrumentista,
os gêneros então “da moda” requerem que ele saiba fazer poucos e simples
acordes, em poucas tonalidades, em alguns poucos ritmos com figuração repetitiva,
em pulso binário ou quaternário, em elaborações estandardizadas, com números de
compasso pré-determinados, que toque sempre forte, e que seu instrumento seja
os que integram a chamada “base” (bateria, guitarra, baixo e teclado), ou o
eletrônico “sampler”. - Os
gêneros incentivados pelo sistema em questão são geralmente misturados com
muitos outros gêneros[4], unidos
em busca de ideais ditados pelo marketing, como de juventude, modernidade,
dinamismo, liberdade, felicidade etc.
Dos específicos “temperos” como o “Pop”, o que se pode garantir é que propiciam uma fôrma (ou melhor, fórmula) que incitam especialmente o entretenimento e o corpo , ou seja, o envolvimento sensorial e motor (mais de movimentos “robóticos” e menos de “rebolados”, vale ressaltar). Isso se dá em detrimento de tantos outros elementos que também constituem todo e qualquer ser humano, em diferentes nuances, como o perceptivo, emocional, racional, reflexivo, intuitivo, espiritual etc. Qual o problema em se ter gêneros que estimulam dois lados do ser, e não outros, pode ser perguntado. A resposta é simples, nenhum problema em existir, a questão está no “monopólio”, lembrando que muitos são os gêneros que incitam outras características humanas mas, novamente, são muito pouco difundidos. Ou seja, com a repetição exaustiva de um ou poucos gêneros que estimulam sempre a mesma face, o ser humano está abdicando da expressão de muitas maneiras de ser que lhe é inerente, mas pouco ou nada delas consciente, dentre as quais a percepção crítica do mundo à sua volta.
Esta complexa natureza e dinâmica da espécie humana tanto é verdadeira como geral pois, todo aquele que faz música, de “a” a “z”, não importando de que época ou região deste mundo, continua até os dias de hoje a criar em muitos diferentes gêneros e a tocar os mais variados instrumentos, tanto os mais remotos como os recém-inventados. Por curiosidade, conheçam a sutileza do que fazem em música as gentes do sertão da Bahia, ou o virtuosismo instrumental dos ciganos, ou o canto de garganta da tradição da música búlgara. Ou seja, o Homem continua se expressando livremente em música, é somente o ouvinte, limitado cada vez mais às gravações escolhidas por um pequeno grupo, que não continua a ouvir com a liberdade que lhe é de direito.
Ainda dentro deste enfoque referente a gêneros, é útil saber o resultado de uma pesquisa que apontou a preferência musical dos ouvintes da cidade de São Paulo em 2002: mais de 40% deles incluía os gêneros não privilegiados pelo sistema quando solicitados a uma escolha espontânea de repertório. Esses dados mostravam que, se de um lado existe uma larga maioria de ouvintes que corresponde e ajuda a perpetuar o sistema que os limita, inclusive e ironicamente defendendo-o, por outro lado restava uma porcentagem significativa, que apesar do todos os apelos de propaganda, acabam por desejar outros gêneros que não “os de sempre”. Esta minoria era composta sobretudo pelos ouvintes acima de 25 anos de idade, ou seja, supostamente menos vulneráveis aos apelos da mídia. Além disso tiveram acesso a outros referenciais musicais, inclusive pelo hábito da casa onde cresceram, em que os pais por sua vez usufruíram de outro referencial quando os meios de comunicação de massa estavam menos disseminados e desenvolvidos. Além dessas razões, existiriam mais duas que explicariam o porquê da idade mais jovem ser um fator importante na escolha de um repertório musical mais limitado, justamente o que reforça a atuação do sistema mercadológico da maneira como se encontra: (1) o fato da estrutura escolar em geral estar bem prejudicada há muito tempo, em inúmeros aspectos, inclusive no quesito Educação Musical que há décadas não está na grade curricular da maioria das instituições; (2) essa faixa etária ter adquirido o hábito de passar muito tempo em frente a televisão e depois internet (cujo repertório musical privilegiado é também limitado), modos esses de descanso e distração mais baratos, que também a afasta dos perigos da criminalidade existentes nas ruas. É certo que existe o fator GOSTO, esses jovens podem verdadeiramente gostar do pouco que ouvem, é natural, porém é importante lembrar que gosto também significa hábito, valores e educação, por isso o principal argumento passa a ser: gosto se cria! Por conta disso explica-se a enorme quantidade de publicidade nas grandes mídias, caso contrário, por qual razão apresentar, falar bem e insistir em um novo produto se as pessoas (consumidores em potencial) já teriam seus gostos direcionados a outras preferências? E para completar essa complexa trama, é importante ressaltar que perto da metade da população brasileira tem até 24 anos de idade, o que garante o sucesso do sistema da Indústria Cultural quantitativamente falando. Vale ressaltar que o fator “faixa etária”, ao contrário do que se imagina, faz ouvintes mais vulneráveis aos apelos de mercado do que o fator “nível sócio-econômico” da população que é sabidamente muito desigual entre nós.
A partir de tudo que foi argumentado, entendemos que é imprescindível cobrar e estimular os meios de comunicação de massa para serem fiéis a toda multiplicidade da expressão humana e permitir que cada ser se aproxime do que lhe convier.
A dúvida que fica é como os muito gêneros musicais existentes podem ser requeridos por um grande contingente de ouvintes já habituados e desinformados de todo o desconhecido que lhe tiraram?! Como haver uma recusa das artimanhas comerciais e publicitárias da fortíssima indústria cultural que os faça perder lucros, espaços e influências?! (Falando em “artimanhas”, em uma rápida análise se pode ver que o programa Windows Media Player coloca como opções para os internautas quase somente os gêneros que interessam aos líderes de mercado e, diferente disso, apresentam uma única opção chamada “World Music”, como costumam classificar todas as músicas de mais de 200 países!).
É de se esperar que nós artistas, educadores e toda sorte de gente pró liberdade, desenvolvimento e justiça do ser, em toda a esfera possível, devemos nos unir para elaborar projetos e ações as mais variadas que sejam a favor do mundo musical que queremos.
Uma possível proposta que precisaria ser amadurecida é o projeto que intitulo “Som + 1”, o qual se fundamenta em apoio cultural em forma de Incentivo e Premiação para que a multiplicidade de gêneros, estilos e tendências entre rotineiramente nas programações das emissoras, especialmente nas “comerciais”, devido à proporção de alcance e poder de influência que significam. Há de se esperar de qual órgão tal sensibilidade?! Ou deveremos inventá-lo?!
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em 2009 para uma ação político-musical junto à Associação Pauta Musical da qual fui membro atuante naqueles anos.
[1] Do termo “jabaculê”, é sinônimo de gorjeta ou propina: no caso, a prática de se pagar de múltiplas formas para que músicas sejam difundidas pela grande mídia e categorizadas como “músicas de sucesso”.
[2] O termo em inglês “Pop” confunde e ilude como abreviação de “popular”, pois sua real origem vem de “popcorn”, entenda: explode e murcha rapidamente como pipoca.
[3] O “Pop” compunha, puro ou combinado, 70 % do que se encontrava nas rádios paulistanas em 2002, apontava uma pesquisa acadêmica de Silvia de Lucca, intitulada “O produto musical nas rádios brasileiras e aspectos de sua influência – um panorama atual paulistano”.
[4] Em 2002, 84% dos gêneros tocados nas rádios de São Paulo eram híbridos, regularmente com pop, rock, dance, e similares (Vale notar os títulos dos gêneros em inglês), atesta a pesquisa citada na nota de rodapé nº 2.