Atuação Política, Social, Cultural e em Entidades de Classe; de que Maneira minha Postura Ideológica teve Repercussão em minha Obra.

A Educação há muito exerce interesse sobre minha pessoa. Recordo-me que, quando criança, causava-me estranheza o fato de que o conhecimento que eu possuía a respeito de coisas que eu considerava absolutamente comuns não ser de alcance ou interesse da maior parte das crianças de minha idade ou da mesma escola que freqüentávamos. Não que eu fosse uma criança prodígio ou extremamente dedicada aos estudos, ou tivesse uma família especialmente culta ou rigidamente ambiciosa quanto a esse aspecto; de modo algum. Minha família, tipicamente de classe média, morava num bairro da periferia de São Paulo. Meus pais não haviam completado o que na época chamava-se ginásio. Além de minhas aulas semanais de piano com a única professora do bairro, tanto eu como meus irmãos nada fazíamos formalmente para a aquisição de conhecimentos além de estudar em escola pública. Obviamente havia a educação informal obtida no lar através basicamente de minha mãe que, como habitual na época, era dona de casa. Não que subestime seu papel como educadora, muito pelo contrário, porém ainda hoje atribuo a ela um procedimento relativamente normal na época quanto a esse aspecto, felizmente aliás. Mas havia um dado especial: ao nos contar suas memórias, dava-nos constantemente  exemplos de ter sido uma pessoa ativa, dinâmica, não conformada, interessada em ampliar seu universo através de cursos, leituras, experiências em diferentes tipos de trabalho e outras atividades. Por exemplo, chegou a cantar em um coral, atuar em peças teatrais, ter aulas de inglês e sapateado, o que cada vez mais percebo como excepcional para uma mulher naquela época. Colhendo ainda dados no passado para escrever este texto sobre minha atuação política-social-cultural hoje, localizo outra atividade de importância: entre meus 12 e 15 anos de idade dirigia um coral/bandinha infantil (os instrumentos eram artesanais) de aproximadamente 40 crianças e, com o objetivo de que participassem mais integralmente daquela atividade, dava-lhes uma aula semanal de música, com os escassos conhecimentos que já havia obtido também no conservatório que freqüentava no centro da cidade. Sim, indubitavelmente os exemplos de minha mãe e meu acesso ao estudo de música quando criança, somados ao nosso cotidiano em um bairro pobre de São Paulo, colaboraram significativamente para minha visão progressiva quanto ao aspecto educacional, principalmente de nosso país como um todo.

A questão educacional musical propriamente dita foi se concretizando a partir de 1982, justamente quando de minha participação em festivais e cursos de música. Sempre estranhei e lastimei não haver cursos musicais dirigidos à população de modo geral, mas somente àqueles que já estudavam regularmente instrumentos musicais, composição ou regência com vistas a um aprofundamento. Incomodava-me perceber que o conhecimento e envolvimento musical estavam restritos a tão poucos e que à maioria, mesmo aos mais interessados, restava uma insignificante participação nesse universo. Como conseqüência disto criei em 1986 o curso hoje intitulado “Eu adoro música, mas não entendo nada!”, exatamente dirigido ao público leigo, com vistas a oferecer-lhe um conhecimento musical básico e abrangente, valorizando e buscando o enriquecimento de seu papel como ouvinte mais consciente e livre, além de desmistificar essa prática que há muito em nosso país, ou efetivamente desde sempre, parece pertencer a poucos privilegiados por sua restrição. Tal curso, estruturado inicialmente em 28 horas, vem sendo continuamente ampliado e ministrado com sucesso em diferentes instituições, preferencialmente naquelas com menos acesso à cultura geral. Mais precisamente a partir de 1993, ao retornar da Suíça onde residi por quatro anos, percebi de modo crescente o importantíssimo papel “educativo” dos veículos de comunicação em nosso país, sobretudo das emissoras de rádio e televisão e, consequentemente, como formadores de gosto e opinião. Entre os mais variados elementos, o musical vem sendo tratado por essas emissoras e pelas autoridades que deveriam por isto se responsabilizar, com absoluto descaso qualitativamente falando, através de um discurso demagogo e grandiloqüente de estar oferecendo o melhor e em grande variedade. Acredito que, atualmente, não se pode considerar qualquer aspecto educacional no Brasil, sem considerar as horas diárias em que toda a população se atém junto a essas emissoras, absorvendo o produto cultural massificante que direta e indiretamente é veiculado, atendendo acima de tudo a interesses do mercado alienígena.

Por essa razão, escolhi esse fato a ser pesquisado no curso de Pós-Graduação que realizei na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, cuja Dissertação defendi em 2002. Essa pesquisa intitulou-se “O produto musical nas rádios brasileiras e aspectos de sua influência – Um panorama atual paulistano” que, também, foi oriunda de meu interesse pelo público leigo e de minha experiência obtida através do curso citado, ministrado durante anos. Sobre esses assuntos venho constantemente escrevendo textos e prenunciando-me em público, retratando o meu interesse, envolvimento e conhecimento a respeito.

Não saberia dizer se esse interesse e envolvimento com a educação musical do público leigo brasileiro afeta minha atividade como compositora ou as obras de minha autoria. Sei que não busco intencionalmente este elo. Sou, porém, consciente de que o acesso e a assimilação pela sociedade brasileira tanto de minhas composições como daquelas que não são regidas pelas restritas leis do mercado capitalista, tem direta relação com a possibilidade de acesso e familiaridade a um repertório musical de fato diversificado e abrangente, e com um processo educacional que permita aproximação, reflexão e escolha dentre o que de fato a cada um diz respeito e interessa.

Silvia de Lucca


FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em 1999 a convite do compositor Ricardo Tacuchian para um projeto de pesquisa que coordenou, intitulado Música de Concerto no Brasil (1964-1997).