Coloridos Tubos de Ensaio no Laboratório da Existência
Líquidos coloridos, até meio cintilantes, dentro de tubos de ensaio com aquela carreira de números que quantificam o conteúdo. Um conjunto de tubos, um monte deles, cada um designado com o que está dentro: Audácia, Temor, Dúvida, Ambição, Amargura, Satisfação, Saudade, Frustração e até mesmo as comuns Alegria e Tristeza. Importante seria também haver distinções internas de cada sensação ou sentimento, pensamento ou intuição, que estivesse sendo avaliado. No caso do Amor, por exemplo, que eu simbolizaria com um líquido de tom vermelho, seria necessário haver um tubo para o Amor Filial (vermelho clarinho), outro tubo para o Amor Carnal (vermelho sangue), outro para o Maternal (vários tons de vermelho, tudo misturado), outro para Amor ao Próximo (vermelho alaranjado), e também à Humanidade (vermelho violeta). Claro que não poderiam faltar o Amor Romântico (vermelho rosado), Amor Idealizado (vermelho vivo), Amor Realizado (vermelho escuro) e Amor Traído (vermelho talhado). Essas nuances, “tom sobre tom” sobre o mesmo tema base, formariam sub-grupos, logo, existiriam vários deles no quadro geral que teria então que ser bem grande, minimamente representando a complexidade da existência humana.
No alto de cada página em que se anota a experiência vivida haveria uma frase título, mais a indicação do dia e horário exato do acontecimento correspondente a cada tubo de ensaio em conformação com o fato analisado, por exemplo: “Uma péssima notícia recebida antes do almoço festivo de domingo”, data “x”, 12:20 horas. Nesse caso, os tubos Preocupação e Nervosismo estariam muito cheios; o tubo Alegria (pela excepcional reunião familiar para saborear o macarrão da Nona) estaria meio vazio, e assim por diante. Em outra página outro título ao alto: “Enfim o apaixonado declara o seu amor sob a cheia lua dourada” – data “y”, 23:58 horas”. Ao lado os tubos assim configurados: Paixão, bem cheio; Euforia, bem cheio; Sensação Erótica, bem cheio; Preocupação (em acordar cedo), meio vazio; Lembrança (de alguma guerra existente no planeta naquele momento), completamente vazio; etc. etc. etc.
Eu elaboraria umas centenas de páginas exemplificando as situações mais corriqueiras e as mais inusitadas vividas por uma só pessoa: “O despertador toca novamente às 5:00 horas da manhã para ela ir àquele emprego horroroso, com ônibus cheio, duas horas para ir mais duas para voltar, cujo salário é mínimo”; “Conquista o terceiro lugar no vestibular que tentava há quatro anos para ingressar na faculdade pública de Medicina”; “No período da TPM o salto do sapato quebra minutos antes de entrar para aquela importante entrevista há muito agendada”; e assim por diante. A cada página a anotação sobre os tubos de ensaio com novas medidas, ou seja, os líquidos coloridos em seus interiores subindo e descendo segundo determinado contexto e momento, orientados ainda pelos inúmeros fatores que influenciam uma pessoa: conformação genética, educação do lar, escolaridade, exemplos e orientações dos pais, influência dos amigos e dos ídolos, cultura local, nacionalidade, valores, hábitos, ciclo hormonal, estado físico geral, biorritmo, religião, signo, carma etc. e tal.
Será que esse material didático, uma vez levado a cursos e palestras, possibilitará imaginar minimamente, através de uma observação rápida, o quanto o tubo Ansiedade, por exemplo, está nitidamente divergente entre a adolescência e a velhice, o conteúdo interno sofrendo alterações correspondentes entre 0 e 100%? Será que esse material, caso seja bem explorado por meio de perguntas, reflexões e considerações várias, servirá para mostrar o quanto é absurdo considerar qualquer Homem como paralisado, definido e imutável quanto ao seu modo interior de ser, quanto à sua necessidade, seu gosto etc.? Será que possibilitará ser entendido que todos temos alterações permanentes, e conforme a complexidade da estrutura que se configura interna e externamente podemos nos identificar com alguém ou com algo (com uma determinada música, por exemplo), inclusive naquele só momento e nunca mais?
Lembrei-me ontem de providenciar o desenho desse laboratório virtual com finalidade didática, assim que Denise narrava um fato de anos passados que guarda até hoje na memória, justamente por ter lhe causado muita surpresa (mas não a mim!): – “Quando eu estava terminando a faculdade de jornalismo, um professor estimulou a classe a freqüentar eventos diferentes; …”. Ela optou em assistir uma orquestra sinfônica que tocou no estacionamento de um shopping center. Nesse dia, atenta, observando tudo, viu atravessar na frente da platéia um casal “punk”, com suas tradicionais vestimentas. O rapaz parou subitamente e ficou observando a orquestra que havia começado a tocar. Sua acompanhante o puxou pela mão para ir embora… ele pediu um minuto. Depois de um tempo ela insistiu em partir… e ele pediu mais um minuto. Ela tentou então pela terceira vez, quando exclamou: – “Eu não sabia que você gostava desse tipo de música!”. A resposta dele: – “Nem eu !”.
No alto da página a frase título: “Jovem punk encontra-se casualmente com uma orquestra sinfônica”, dia e horário tal e tal. O tubo Surpresa Agradável, 100% cheio; o tubo Sensação de Plenitude, 90%; o Entusiasmo, 90%; o Interesse (em partir do local)”, 15%; Curiosidade (de conhecer outras orquestras), 35%; Lembrança (do trabalho que precisaria realizar à tarde), 2%; etc. etc. etc.
Estou sempre a procura de tirar as pessoas das gavetas identificadas com velhos papéis fixados que não por acaso teimam em rasgar, descolar, desbotar ou cair.
Comprovar que todos nós, em cada local e a cada momento, podemos ter uma determinada conformação que possibilite a identificação com um tipo de música específico, inclusive não conhecido e jamais imaginado. Tamanha feliz cumplicidade e sintonia já legitimam por si a existência e propagação do maior número de gêneros musicais possíveis já existentes e por vir.
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em setembro de 2007 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br