O Produto Musical Transmitido no Brasil

Partindo-se do princípio de que a ausência de um planejamento educacional ampla e profundamente organizado, eficazmente executado, implicaria em uma condição para a estagnação do desenvolvimento generalizado de uma sociedade, é que ao Brasil caberia, no momento, a preocupação e a dedicação daqueles mais conscientes e capazes para esta causa. No plano internacional, sobretudo na atual condição da globalização que a todo mundo se estende, sociedades não trabalhadas cultural e intelectualmente para o novo milênio, favorece sua marginalização ou sua submissão em diversos setores perante outros mais bem preparados.
Escreve Hélio Sena: “Todos sabemos que a identidade cultural é o principal fator de coesão de um grupo. Povo que perdeu sua identidade é mais fácil de ser dominado.” (apud Paz, 1989: 11)
Gisela Ortriwano, igualmente, faz uma referência alertando-nos diretamente no mesmo sentido: “As potências internacionais, sem exercerem qualquer pressão diplomática – e até obtendo lucros -, conseguem influenciar o resto do mundo não só com a divulgação da informação em si, como também da interpretação e emissão de opinião” (1985: 62)
Jorge Coli enfatiza: “Num sistema de ensino voltado para a formação a mais pragmática e tecnológica, sob o desinteresse e a incompetência dos ‘responsáveis’, e bombardeado por emissoras de rádio e TV regidas pelo princípio absoluto do lucro, você se encontra numa situação de grande miséria cultural” (1981: 127).

A partir dessas premissas, entendemos ser fundamental entender e incluir a arte como fator básico de formação da sociedade, em prol de seu próprio desenvolvimento por outras vias que não somente a econômica.
Quanto ao ensino musical oficial no Brasil, foi introduzida a obrigatoriedade da aula de música para todos os níveis escolares, quando da promulgação do Decreto-lei nº 19.890 em 18 de abril de 1931. Nessa mesma época Villa-Lobos apresenta a proposta pedagógica, cujo programa deveria ser implantado em todo o território nacional. Este pretendia uma educação estética, social e artística embasada no canto coletivo (Souza, 1999: 18-25 ). Contudo, conforme o descompromisso para com a atividade artística de modo geral que veio se solidificando nas escolas a partir do período da ditadura, e segundo a idéia cada vez mais valorizada da necessidade da educação pragmática para uma sustentação econômica da nação, foi cultivada de modo ininterrupto e crescente a concepção de música como atividade fútil, supérflua e, por conseguinte, elitista. Estes conceitos, uma vez generalizados e sedimentados, contribuem para que não tenhamos consciência do poder que a música de fato exerce sobre o ser humano – muito além e mais profundamente que aquelas funções descomprometidas – e nem tão pouco consciência do que somos, do que temos, e do que queremos.
Como uma infeliz coincidência, durante este período de ausência de estudo de música nas escolas, afirmou Júlio Medaglia:

“… a ‘música de repetição’, que ele [Villa-Lobos] tanto temia, transformou-se na veiculação de um vasto detrito mercadológico, sem valor cultural e artístico, que grandes cadeias internacionais e nacionais de tráfico sonoro despejam pelo país afora sem que sua gente – analfabeta musicalmente e sem governantes sensíveis ao problema  –  tenha meios de rejeitar.” (1988: 172-174)

Atualmente, discutir sobre Educação Musical implica quase que necessariamente em não ignorar sua relação direta com o poder de influência dos meios de comunicação de massa, ou seja, a polêmica questão do papel destes como formadores de gosto e opinião, e mesmo de comportamento. Vale lembrar o quanto o material musical veiculado por eles está absolutamente presente em nosso cotidiano moderno, inclusive sem a nossa consciência, até mesmo contra nossa vontade, em quase todos os lugares onde estejamos, em quase todas as situações que vivemos.
No tocante ao tipo de ascendência que os meios de comunicação de massa exercem sobre o público ouvinte, eles têm difundido um repertório limitado, homogêneo e repetitivo nos mais diversos aspectos e elementos musicais, tais como época, duração, local de origem, gênero/estilo/tendência, melodia, ritmo, dinâmica, harmonia, contraponto, instrumentação, forma, linguagem, fraseado, articulação.
Assim como qualquer outro objeto da moda – conforme vem sendo observado, testemunhado, mas pouco documentado em nosso país – o repertório musical está significativamente estandardizado (Corrêa, 1989) embora, intencionalmente ou não, seja apregoado pelos próprios meios que o difundem como diversificado, planejado para atender às mais variadas preferências e exigências, conforme se caracteriza a tão heterogênea sociedade em nosso país.
No campo musical – no que concerne aos diferentes processos convencionais de aprendizagem e desenvolvimento auditivo – a mera repetição de estímulos sonoros idênticos ou semelhantes é fator determinante, levando à familiaridade e até mesmo ao vício neles mesmos. A distinção na escuta, no caso, fica a critério unicamente do maior ou menor grau de atenção, conscientização e reflexão envolvidos em tal prática, habilidades estas desenvolvidas – ou não – sobretudo durante a formação escolar, mais ou menos influenciadas pela mídia. Assim sendo, torna-se imprescindível considerar e pesquisar em nossa realidade, o papel educativo musical tanto das escolas como dos meios de comunicação de massa.
Com raras exceções, um “pacote musical” bastante característico tem chegado à maior parte do público brasileiro nas últimas décadas, justamente quando o projeto de musicalização em escolas públicas perdeu definitivamente seu aval, para não sobrar mais que poucos arremedos de um sonho de democratização do ensino, ou excepcionais fenômenos de qualidade graças à força heróica de pessoas especialmente persistentes.
Em busca de ampliar a compreensão dos muitos aspectos envolvidos neste tema, cremos cabível a tentativa de delinear o que entendemos como uma influência natural de distintas mas conectas circunstâncias, em que as chamadas contracultura e cultura de massa surgiram como reflexo, por proporem e reforçarem novas atitudes, tanto ideologicamente como na prática. Neste sentido, exemplificaremos a seguir o que julgamos como um generalizado sintoma musical nacional atual – logo, cremos, facilmente identificável -, constatado por meio de antiga e sistemática observação:
1.    Ausência quase que total de uma real Educação Musical[1] em todos os níveis escolares, de instituições tanto públicas quanto privadas;
2.    Ausência quase que total de professores formados ou especializados em música na rede de ensino fundamental e médio, capacitados especialmente para ministrarem esta disciplina, no caso de ela existir;
3.    Preocupação dos professores responsáveis em “ensinar” música nas escolas, tendo como principal ou mesmo único objetivo, o lazer, o relaxamento, a interação entre os alunos e a desinibição de alguns;
4.    Conservatórios e cursos universitários de música em grande parte desatualizados e pouco eficientes na formação pedagógica, com estrutura curricular embasada ou similar a realidades distintas da brasileira;
5.    Proliferação de escolas livres de música com cursos normalmente restritos, atendendo quase que exclusivamente aos ditames da moda (ensino dos instrumentos guitarra e baixo elétricos, bateria, teclado e violão); cujos professores raramente têm ampla formação musical e comprovada competência pedagógica;
6.    Desconhecimento por parte do público leigo da existência e da importância do estudo de música – acadêmico ou autodidata – para o estabelecimento e desenvolvimento de uma carreira profissional duradoura, seja qual for o gênero ou estilo a que se dedique;
7.    Bibliografia musical direcionada ao ouvinte leigo normalmente ineficiente para nossa realidade, a qual normalmente subestima ou superestima o leitor;
8.    Concepção de estudantes de música ou de músicos inexperientes que a simples gravação de um CD seja garantia para torná-los conhecidos do grande público, e que “estourar” em sucesso, fama e riqueza seja praticamente uma conseqüência natural;
9.    Inexistência na maior parte das instituições educacionais e sociais, de grupos instrumentais como orquestras, bandas, fanfarras e corais;
10. Expansão quase ininterrupta da indústria fonográfica brasileira principalmente desde a década de 60, sendo talvez ameaçada somente pela difusão musical via Internet e pelo mercado da falsificação (“pirataria”);
11. Repertório musical que, de modo crescente, tem chegado ao ouvinte através de meios eletro-eletrônicos, e menos por músicos executantes ao vivo;
12. Apresentações musicais, sejam elas ao vivo ou não, que se limitam exageradamente a alguns gêneros, estilos e tendências, a maior parte dos quais podem ser agrupados na denominação ‘música pop’;
13. Rádio, televisão, cinema, teatro, publicidade e computadores que veiculam majoritariamente gêneros, estilos e tendências musicais que acima de tudo correspondem ao interesse da grande indústria fonográfica;
14. Escassez de apresentação e difusão de repertório musical oriundo de regiões brasileiras e estrangeiras não urbanas ou de grandes metrópolis;
15. Corriqueira utilização da terminologia MPB-Música Popular Brasileira, a qual, embora contenha a adjetivação ‘brasileira’ em seu termo, estendeu-se e gradativamente incluiu características não nacionais em sua concepção, apesar de sempre ter excluído determinados gêneros de fato brasileiros, principalmente aqueles não provenientes dos grandes centros econômicos do país;
16. Apresentação e difusão do repertório de música de concerto[2] bem limitado, resumindo-se geralmente a alguns poucos compositores europeus dos séculos XVIII e XIX, e acompanhado de chavões enganosos, tipo: música dos grandes mestres, música para relaxar, música elitista, música séria;
17. A figura do músico, especialmente a do cantor, usualmente substituída em igual consideração e status pelos show men, animadores de palco, humoristas, pessoas carismáticas e todos os demais interessados na atividade, porém sem necessariamente possuir para tanto qualquer conhecimento musical ou técnico vocal, prático ou teórico, nem mesmo aptidão natural;
18. A figura do maestro usualmente substituída, inclusive em semelhante status, pelo DJ (disc jockey), que “rege” com sua “batuta eletrônica” os sucessos do momento, ou melhor, que colabora para a obtenção desse sucesso;
19. Repertório musical religioso tendendo aos estilos e gêneros musicais da moda – independente do credo – que enfoca o texto e praticamente ignora a característica musical propriamente dita e seu significado, muitas das vezes expressando ambos mensagens contraditórias entre si;
20. Divulgação dos eventos musicais quase que exclusivamente restrita a anúncios e matérias sobre os super stars, em geral cantores, em grande parte estrangeiros (especialmente norte-americanos);
21. Desaparecimento de crítica musical na imprensa escrita de grande circulação, tendo sido substituída por comentários de jornalistas, a maioria sem formação específica, sobre lançamentos de discos, estréia de shows, surgimento de novas bandas; características de espetáculos musicais;
22. Existência na televisão de festivais ou concursos de música tendenciosos, que favorecem a continuidade do sistema vigente em que o mesmo material musical divulgado pelos mesmos nomes têm os melhores espaços.

Sendo a cultura agregadora natural de distintas expressões, materiais e recursos, sugere que as características musicais, acima citadas, são uma conseqüência natural de nossa realidade atual, e não compreendem uma exceção, estão mais ou menos estandardizadas em praticamente todas as regiões do país.
Refletindo sobre estes que consideramos ‘sintomas’, e procurando conferir quão identificáveis são em nosso cotidiano, parece possível conceber, sem correr o risco de se fazer referências absurdas, sustentadas em hipóteses infundadas ou adivinhações, que todo um sistema coerente e muito bem articulado predomina e, tal e qual uma bruma, a todos envolve indistintamente. Segundo um conceito popular que muito se ouve, inclusive no exterior, é que “o brasileiro” compreende um “povo” reconhecidamente “musical”, que espontaneamente, no seu cotidiano, parece justificar o ditado: Quem canta [ou ouve música] seus males espanta. Na maior parte das vezes, sem consciência desenvolvida desta sua característica, e sem usufruir de um processo de aprendizagem que pode complementar a experiência artística, pode-se especular que ao povo brasileiro é propiciado somente ter a música no sangue [e no pé], mas não tê-la na cabeça. E mesmo que alguns aleguem a naturalidade desse fato, que se admita tratar-se de um fenômeno cultural, mesmo assim é passível de ser questionado: não estaria há muito sendo sustentado por circunstâncias facilitadoras e inibidoras ou, para ir ainda além, não estaria instalado total ou parcialmente graças ao interesse e benefício de alguns poucos, que têm como álibi a concepção geral do talento natural de nossa gente para aproximar-se de determinadas músicas e ignorar ou rejeitar outras?
O fato é que, uma vez que o ouvinte comum adquira o contato e o saber que lhe é de direito, estará apto e livre para usufruir ou não, inclusive o que hoje possa ser chamado de “elitista”. Este adjetivo terá sua existência garantida somente nas sociedades em que houver aqueles que não têm condições de alcançá-lo. Da mesma forma, o “gosto popular” só existe porque está implícita ou explicitamente relacionado aos que não puderam passar pelo processo de educação formal ou “de berço”. Em uma sociedade homogênea quanto ao seu nível de escolaridade e educação generalizada, entende-se a rígida classificação dual “erudito / popular”, por exemplo, simplesmente como gêneros ou estilos mais ou menos distintos, porém sem conotações outras, pejorativas e excludentes, relacionadas a nível sócio-cultural-financeiro, como de praxe ocorre em nosso país.
Acreditamos que o verdadeiro processo de educação ocorra, quando proporciona aos seus cidadãos, indistintamente, meios necessários para que possam aproximar-se e familiarizar-se com vivências dos mais variados tipos e diferentes níveis de repertório; quando possibilita conhecimento amplo e genérico suficiente para que se tenha real opção de escolha quanto ao objeto em si e a maneira como com ele envolver-se, usufruir e, se for o caso, gostar e adquirir.
Neste momento, julgamos importante esclarecer a diferença quanto ao implícito papel educativo entre dois modelos musicais distintos, que aparecem atualmente nos veículos de comunicação de massa em geral, em nível nacional e internacional, com raras ressalvas: O primeiro, em muito maior proporção em nosso país, caracteriza-se através do envolvimento do ouvinte com uma prática musical limitada exclusivamente a determinados gêneros, estilos e tendências, simplificada, redundante, sem compromisso com o fornecimento de informação, amplitude e conteúdo da programação, e, sobretudo, com o papel educativo desse material, visto sobremaneira pelos responsáveis como produto de mercado. Trata-se de uma realidade que, mesmo supondo não mal-intencionada em princípio, limita o ouvinte à inexperiência sonora e à falta de parâmetros, situação esta, por sua vez, absolutamente favorável à criação e desenvolvimento de ardilosos mecanismos que procuram direcionar o ouvinte para o interesse que mais convém à indústria cultural e ao sistema capitalista: à compra compulsiva sem critério ou reflexão. Neste caso, a música como entretenimento parece ser a mais visada, uma vez que o “não pensar” e o descompromisso é uma condição. Pode-se perceber nesta complexa estrutura o estabelecimento de um “círculo vicioso”: formação da audição sem parâmetro ® aceitação da difusão musical padronizada ® reforço à audição sem parâmetro ® …
Musicalmente falando, entendemos que, com a tecnologia contemporânea que nos chega como ‘avançada’, a qual possibilitaria ao menos ilusoriamente um rápido deslocamento para qualquer tempo e lugar, estar aprisionado a uma escuta musical restrita em muitos aspectos, comporta uma polêmica consideração: vende-se uma escuta musical ditada sob uma falsa sensação de escuta musical livre, mascarando aos ouvidos leigos o embotamento sensorial, perceptivo, intelectual e comportamental via repetição da mesma estrutura e da mesma essência.

O segundo modelo musical, quase uma exceção em nossa realidade, poderia ser classificado como mais abrangente e qualitativamente compromissado: bem pesquisado e elaborado para outros fins que não unicamente ou primordialmente o comercial, proporciona uma percepção musical ampla através de diferentes gêneros, estilos e tendências, estimula a profundidade da assimilação do objeto artístico através do uso da inteligência, da sensibilidade, da apreciação, da expressão e criatividade, e incita naturalmente à independência dos ditames que subjugam a capacidade do ouvinte, dentro do que isso seja possível. Tal procedimento revela uma preocupação para que o público possa ter contato com o vasto e diversificado material sonoro tanto musical como extra-musical existentes (ou seja, com o que se ‘fala’ e ‘escreve’ sobre música), inclusive com os de origem mais distantes.
Torna-se importante evidenciar que, diferente do que normalmente é citado, “qualidade musical” não está necessariamente relacionada a este ou aquele tipo de música, e sim a todo um universo aparentemente paralelo, cuja inerência altera inimaginavelmente a escuta e a consciência musical do ouvinte, tais como o arranjo, a interpretação e as condições ambientais. Caso fossem restringidas ao público geral somente músicas “de qualidade”, selecionadas por um criterioso grupo de especialistas – prática esta que ocorre em alguns países – ainda assim acusaríamos este processo como não educativo.[3]
A prática de escuta adquirida pelo segundo processo acima pode parecer, pela sua distinção, individualista, solitária ou, no mínimo, atípica a alguns, segundo insinua a mensagem normalmente passada pelos grandes meios de comunicação que atuam conforme o primeiro modelo musical exposto. Embora chegue a verbalizar o contrário, procurando inclusive seduzir os que são atraídos pelo status do tratamento personificado vip, em verdade a mídia incita camufladamente à consideração de que o gosto ou preferência pelo que é considerado simplesmente como diferente, conota uma inadaptação temporal e social, cultural enfim. Tal concepção serve de elemento atemorizante a um significativo número de pessoas, de modo a estimular o ouvinte a desejar ouvir o que e como ouve a maioria, a fim de tranqüilizar-se por auto definir-se, inconscientemente, como normal, sociável, adaptado, moderno, valorizado e aceito. Deste modo a mídia obtêm o aval que necessita para continuar, mesmo que disfarçadamente, oferecendo os seus “velhos bordões musicais”, inclusive às classes sociais mais privilegiadas[4]. Parece acertado supor, por meio das colocações anteriores, que nas condições vividas atualmente no mundo mercantilista capitalista, dar preferência à arte de modo geral – e nesta a musical – que se distinguem como a chamada cultura de massa, parece ser muito coerente. Esta, diferente do que muitos podem conceber para um áureo universo artístico, caracteriza-se como um produto industrializado como qualquer outro, conforme já apontamos, em que as músicas estão sendo inventadas por gravadoras, conforme afirmou o maestro Júlio Medaglia[5], ou criadas nos laboratórios de Marketing das companhias de disco, conforme escreveu o jornalista Mauro Dias (1999).
Nos últimos anos, temos observado que, mesmo os ouvintes aparentemente despreparados, familiarizados quase que somente com essa limitada realidade – não raro sem terem tido a oportunidade de se aproximar de músicas que não seguem a conhecida fórmula do sucesso – começam a se conscientizar da repetição que caracteriza o chamado “novo” dentro do repertório que ouvem, e alguns deles se queixam.
Este fenômeno parece indicar que aquela prática adotada pelos meios sonoros de comunicação torna-se abusiva, e requererá mudanças de mentalidade e de atuação. O sucesso dos sistemas criados para difusão musical via Internet simbolizam ao menos a possibilidade de uma “válvula de escape” à rigidez do sistema implantado que nos propusemos aqui a contestar, mas somente àqueles que a ela têm acesso, o que no Brasil atual significa o privilégio da população jovem. Por outro lado, neste sentido, paira uma dúvida quanto a possibilidade destes em buscar espontaneamente no mundo virtual um material sonoro musical diferenciado, justamente pelo hábito descrito.
É impossível prever o que ocorrerá às indústrias culturais ao sustentarem a prática de somente provocar mudanças superficiais em seus produtos com o objetivo de manterem o equilíbrio de investimentos e retornos financeiros que a elas interessa. Resolverão por si o problema da saturação que começou enfim a provocar em parte dos consumidores que buscam novas experiências mesmo que inconscientemente? Serão levadas oficialmente a isto por pressão do poder público? E, mais particularmente: existem meios de se fazer alterações substanciais nessa dinâmica, dado o extenso período em atuação que favorece o esquecimento ou enfraquecimento de outros referenciais? Neste sentido, pode-se inclusive considerar que o tempo é um inimigo natural, uma vez que as gerações mais jovens tornam-se ainda mais vulneráveis à falta de distintos parâmetros que fujam à moda ditada pelo especialíssimo setor de marketing, principal responsável pelo sucesso do mercado como hoje se apresenta, mesmo o cultural-musical.
A atuação direta de pessoas ou órgãos especializados e autorizados em educação e cultura – que atuariam como orientadores, consultores, ou até controladores do exercício de propagação do material musical veiculado pelas mídias no Brasil – considera-se ser insuficiente, uma vez que as empresas de comunicação parecem livres para criar, elaborar e distribuir o que a elas convém, e não à população em geral, segundo seus próprios critérios. Com a conivência do Estado, ou melhor, com a permissão oficial concedida pelo Executivo à iniciativa privada em toda a história dos meios de comunicação de massa no país, tem cabido somente a esta a responsabilidade pelo conteúdo da programação que transmite e suas conseqüências, sem o devido estabelecimento explícito e transparente de seu comprometimento junto ao público.
Claro está que o processo que procuramos resumir não se restringe unicamente às questões artístico-culturais, no entanto, todas as questões mais estritamente psico-sociais, estabelecem-se para nós como muito passíveis de zelo: quando a expressão humana é concretizada na manifestação artístico-cultural, esta passa a funcionar automaticamente como um espelho estilizado, onde a pessoa, em suas diferentes manifestações, mira-se e cria, mesmo que inconsciente, uma auto-imagem.
Logo, o envolvimento da sociedade organizada em todo este processo seria o de incentivar um interesse mais sistematizado pelo público ouvinte brasileiro, ao reconhecer o papel natural deste no estabelecimento do padrão de qualidade e diversidade, enquanto agente controlador, daquilo que no Brasil é produzido musicalmente e divulgado pela mídia.
Neste sentido, é importante salientar que, sintomaticamente, um interesse mais sistematizado pelo público ouvinte vem paulatinamente ocorrendo e se ampliando em diferentes focos no Brasil por parte dos mais interessados nesta questão, sobretudo por parte de músicos, educadores, psicólogos e especialistas em comunicação. Cada vez em maior número, melhor organizadas e ministradas, vêm ocorrendo diferentes tipos de ações dirigidas à formação ou informação musical do público de modo geral.
Estamos absolutamente convencidos, entretanto, de que uma ação, talvez ainda mais ampla e cuidadosa, deva ser planejada para que alcance e se imponha eficientemente perante a gigantesca, complicada e bem articulada estrutura dos meios de comunicação de massa, segundo todas as alegações acima.
Ao considerar a realidade como se apresenta, espera-se que o poder público e a sociedade civil possam enfim organizar-se e mobilizar-se para uma reversão do quadro apresentado. Neste sentido, a experiência tem apontado que talvez fosse melhor inverter a ordem desse envolvimento para possibilitar ações mais bem sucedidas e duráveis: primeiro a conscientização da sociedade civil, e depois o estímulo à mobilização do poder público. Justificando de um outro modo: para haver a transformação de conjunturas tão cristalizadas, atitudes ousadas daqueles que nela simplesmente acreditam e valorizam – tal como Villa-Lobos – podem caracterizar-se como uma força propulsora, que tende a aglutinar parceiros e estimular (ou pressionar) à ação necessária os que foram eleitos pela maioria na expectativa de cumprirem suas funções a contento.

Silvia de Lucca

Referências bibliográficas

Livros:

Coli, Jorge. 1995. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 131 p.

Corrêa, Tupã Gomes. 1989. Rock, nos passos da moda: mídia, consumo X mercado cultural. Campinas, SP:  Papirus, 149 p.

Medaglia, Júlio. 1988.  Música Impopular. São Paulo:  Global, 327 p.

Ortriwano, Gisela S. 1985.  A informação no rádio: os grupos de poder e a determinação dos  conteúdos. São Paulo:  Summus, 117 p.

Paz, Ermelinda Azevedo1989. Quinhentas canções brasileiras. Rio de Janeiro: Luís Bogo, 179 p.

Artigos em revistas:

Medaglia, Júlio 2002. “Estoque regulador cultural”. Concerto, ano VII, nr.70: 10.

Souza, Jusamara; 1999. “A concepção de Villa-Lobos sobre a educação musical”. Brasiliana, nr. 3: 18-25.

Artigos em jornais:

Dias, Mauro. 7.06.99. “Um massacre cultural sem precedentes”. O estado de S. Paulo

FONTE: Artigo lançado na Revista Brasiliana número 24, de dezembro de 2006, uma publicação da Academia Brasileira de Música, com o título “O Produto Musical Transmitido no Brasil”.

[1] A qual implicaria em viabilizar a curiosidade, a descoberta, a autonomia e o domínio sobre o objeto musical, por meio de exercícios de escuta, sensibilização, reflexão e conscientização dos vários elementos sonoro-musicais e seus múltiplos efeitos sobre o aluno-ouvinte, em seu aspecto individual e social.
[2] Ou “música erudita”, ou “música clássica”, ou outras tantas denominações, como exemplificado logo adiante.
[3] Júlio Medaglia faz uma direta referência a esta questão na matéria intitulada “Estoque regulador cultural”: -“… Sabemos também que produzir cultura é uma atribuição da sociedade. Mesmo porque, no século XX, quando alguns governos mais deslumbrados, de extrema esquerda ou direita, se meteram a produzir cultura e mesmo apontar os caminhos estéticos dessa produção, o resultado foi desastroso”.  Revista Concerto, fevereiro/março-2002, ano VII, nº 70, p. 10
[4] Seria interessante pesquisar os vários recursos utilizados pela mídia em geral para que as classes sociais brasileiras classificadas como “A” e “B” aceitassem e consumissem a música sertaneja como ocorreu especialmente na década de 80.
[5] Comentário feito em seu programa de rádio intitulado “Contraponto”, levado ao ar pela Rádio Cultura de São Paulo FM, dia 9.06.2000, às 9:00 horas. Nele, Júlio Medaglia faz referência à mídia como responsável pela decadência da qualidade musical, pela “música inventada por gravadoras”, em detrimento da cultura popular.