Trabalhadores acima de tudo

No decorrer dessa semana ocorreu um fato que julgo sintomático. Com três colegas músicos que encontrei, todos de especialidades diferentes, abordamos espontaneamente a questão do profissionalismo musical em nosso país. Melhor seria dizer que comentávamos perplexos sobre o NÃO profissionalismo musical brasileiro da contrapartida de quem contrata um músico ou usufrui do resultado de seu trabalho. Nesse sentido, continuamos testemunhando um conceito inexistente para a maioria da população e simultaneamente um “faz de conta” nas esferas oficiais. 

Está bem, sou consciente que o termo PROFISSIONALISMO, quando em seu exercício, está em desuso nos mais diversos setores de trabalho entre nós. Porém, há uma diferença que pretendo tentar explicar.

Quando avaliamos um trabalhador que chamamos de “braçal”, costumamos VER o esforço envolvido na atividade, seja no suor escorrendo em sua testa, seja em seu modo ofegante de respirar, seja nos músculos desenvolvidos ou nas mãos calejadas que aparenta, inclusive, no desgaste revelado muitas vezes em seu semblante. Também podemos MEDIR o tempo que se dedica ao trabalho; começou às tantas horas e foi até outras tantas, com “x” minutos para o almoço, o que nos confirma a grande período de tempo e esforço envolvidos. 

Quando analisamos um técnico especializado ou um trabalhador burocrático, utilizamos quase que dos mesmos critérios de avaliação (VER o esforço e MEDIR o tempo), e acrescentamos o ESTUDO realizado para que tenha a competência, a habilidade e o direito de realizar aquela atividade profissional, por vezes conseguida via concurso ou outro fatigante processo competitivo.

E no caso das atividades artísticas, como é que fica? (Do mesmo modo podemos transferir a lógica para as atividades esportivas) Bem, em primeiro lugar precisamos fazer uma grande diferença entre o artista amador e o profissional, o que já não ocorre nos casos anteriores. Eu resumiria dizendo que o amador costuma ser movido exclusivamente pela paixão, o que em si significa muita coisa, mas, além de não viver financeiramente daquela atividade, ele em geral não tem compromisso social, nem pessoal e muito menos estético com o que faz. O amador exerce aquilo que gosta de fazer como vai sendo possível em sua rotina de vida e segundo as circunstâncias gerais permitem. Ora com maior, ora com menor dedicação; ora acerta, ora erra; ora faz bonito, ora nem tanto, mas praticamente sem se cobrar e nem ser cobrado, afinal, o amador não se coloca como um profissional no mercado, ou seja, não oficializa a sua competência e não se compromete em atender acertadamente as necessidades e demandas de um setor, não se responsabiliza por elas. Por isso tudo ele tem a vantagem de se dedicar a atividade somente por prazer, caso sinta vontade e, por consequência, como pode, quando pode, do jeito que pode. 

Um profissional, por outro lado, já compreenderia todo o comprometimento abdicado acima (embora saibamos que nem todos têm a mesma consciência no que se refere a compromisso). Em primeiro lugar, para poder realizar bem a atividade, a ponto de agradar e satisfazer a sociedade (a qual, aliás, representada por algumas pessoas ou setores que irão pagar pelo serviço), o profissional precisará estudar e exercitar-se muito, seja em uma escola, seja orientado por um professor particular, seja autodidaticamente. 

Diferente de outras profissões, às quais basta um aprendizado bem realizado e alguns cursos de atualização para manter o trabalhador qualificado, o músico precisa da prática cotidiana, justamente por se tratar de habilidades que envolvem o apuramento meticuloso da audição, da visão, da musculatura fina e muito trabalho mental, caso contrário, perde-se muito facilmente as agilidades adquiridas (semelhante a uma atividade esportiva: aqueles que caminham ou correm alguns dias por semana, certamente já observaram o que ocorre com o corpo quando param a atividade por alguns poucos meses). Eu costumo alegar que todo o brasileiro deveria estudar seriamente ao menos um semestre de música, para se conscientizar do que isto significa em ter que tratar da respectiva dedicação, persistência, paciência, compreensão, atenção, esforço mental e físico envolvidos, e ter ao menos uma noção do tempo e esforço necessários para se dominar e manter uma técnica instrumental, vocal, de criação ou regência. Como exemplo, podemos citar uma faculdade de música, cuja formação completa leva de quatro a cinco anos e, diferente do que muitos imaginam, o candidato já deverá ingressar conhecendo mais ou menos música, pois a faculdade neste caso implica em uma espécie de grande aprimoramento amplo e qualificado. Fora isso, depois de terminá-la, não raramente o recém-formado, sentindo-se incompleto, ainda procura ter aulas particulares com os grandões da área, o que financeiramente costuma ser complicado.

NOTA: Nesta fase em que o capitalismo e a globalização dirigem muito o proceder da maioria dos setores, precisamos fazer uma ressalva importante: ao se tratar de “músicas comerciais” ou “músicas de massa” ou “músicas popularescas”, desconsiderem o que comentei acima. Por que? É simples: a razão principal dessas músicas serem como são, não é cultural, artística, social ou educacional, mas quase exclusivamente dar lucro às empresas que fabricam seus discos (vide a minha Dissertação de Mestrado e alguns textos de minha autoria em que abordo esse assunto). Desse modo, o produto que fabricam devem lhes custar muito barato, para obterem um bom lucro vendendo as gravações a preço de mercado. Para tanto, também os músicos envolvidos precisam custar-lhes pouco, o que significa, na maior parte das vezes, músicos menos qualificados, menos experientes, menos informados e formados etc., e só irão se fazer valer para o público de acordo com o forte marketing que as empresas farão deles, vendendo-lhes como “os melhores”, caso contrário, o “produto” final será ignorado, ou seja, as gravações feitas desse modo ficarão em qualquer canto escondidas, esquecidas.

Bem, voltemos a falar do que mais interessa no momento…

O músico profissional, além de se envolver com a música propriamente, na proporção comentada, ele deverá ocupar-se de muitas e muitas atividades extra-musicais, considerando que na maior parte das vezes ou ele é autônomo, ou tem contratos temporários, ou seja, raramente desfruta de qualquer estabilidade ou segurança no campo profissional. Assim, precisa fazer constantes contatos, propostas, projetos, em grande parte por escrito, o que traduzimos por “atirar para tudo quanto é lado, para se tentar acerta um alvo”. Em seguida terá que aguardar meses ou mesmo anos para o desenrolar burocrático, até a resposta definitiva chegar, isto quando ela chega! Para terminar de narrar a via-crúcis, tenha a consciência de que a maioria das respostas são negativas, pois lembremos aqui, inclusive, das “cartas marcadas”). Nisso ainda vale um adendo: tornou-se muito habitual no Brasil o setor contratante do eventual trabalho não dar resposta qualquer, deixando o músico acreditar em uma possibilidade, quando em grande parte das vezes a sua proposta já foi descartada de início. O que muitas vezes ocorre, é toda esta atividade prévia que significou dias, semanas ou meses de preparação (criações, pesquisas, estudos, textos redigidos, gravações, viagens, além de telefonemas, troca de mensagens, reuniões) culmine em um resultado propriamente musical de 120 minutos, cujo músico será pago somente por esse tempo, e não por todo enorme trabalho prévio. Por exemplo, recentemente eu dei uma palestra em uma faculdade, a qual me tomou meses de organização geral junto à instituição, depois 10 dias inteiros para organizar todo o material necessário (gravações de música, data show, elaboração de textos para serem fotocopiados, o planejamento em si da palestra), mas na hora de se considerar a remuneração, foi tido em conta somente aquelas horas nas quais estive “em cena”, portanto ignorado todo o trabalho nos “bastidores”. Tudo isto sem levar em consideração que para eu apresentar aquele determinado nível de palestra, mais de trinta anos de experiência estavam implícitos, ou seja, em nosso trabalho também está contida toda a bagagem de conhecimento adquirido até então, tanto na teoria como na prática, o que certamente deveria valer na hora de uma avaliação profissional.

Sendo assim, para um músico profissional dar aquele concerto ou show de somente duas horas que você tanto gosta, ele precisou TRABALHAR décadas para ser capaz de se desenvolver até aquele ponto, e podem estar certos, aquela apresentação não caiu de paraquedas, como se diz, mas ela foi, em longo tempo, árdua e meticulosamente idealizada, projetada, desenvolvida, apresentada, reapresentada, negociada, alterada, aprimorada, até ficar, mais ou menos, como o músico gostaria.

Eu sei, eu entendo… o artista precisa de um tanto de talento para se desenvolver (atente que escrevi “um tanto”), está certo, e este, talvez, caia do céu. Também é verdade que o resultado final de um trabalho como artista pode ser muito prazeroso (atente que escrevi “resultado final”). Contudo, por favor, nossa profissão está longe de ser resumida em “meros” TALENTO e PRAZER. Para vocês que se sentem nas nuvens no momento que ouvem uma música, lêem um livro, assistem uma peça de teatro, conscientizem-se de que nosso papel é bem outro nesta história romântica. Nossos dias não são sinônimos de tranquilidade, facilidade, mordomia e entretenimento, ou seja, não são um “levar a vida na flauta”, segundo esse ditado equivocado, o qual denota a ignorância que muitos têm do assunto. 

Enfim, apesar de certamente amarmos o que escolhemos para trabalhar, o que obviamente é um privilégio e muitas vezes nos realiza, nossa vida não é um mar de “delícias” ou “gostosuras” só porque convivemos diariamente com arte, como expressam de imediato os que perguntam sobre nossa profissão e ouvem nossa resposta. Como bem disse alguém, a verdade é que ser artista significa 10% de inspiração e 90% de transpiração! Por isso já peço desculpas pela decepção que talvez tenha causado pela desmitificação que trago aqui. 

Para finalizar, defendo mais um argumento bem realista sobre o quanto o nosso fazer musical significa um ofício. Como todo e qualquer brasileiro, nós precisamos viver no sentido mais mundano do que isto significa: comer, pagar por moradia, locomoção, criar filhos, além de comprar nossos caros instrumentos, pagar seus consertos, troca de peças e manutenção etc. e tal. Nesse sentido, a nossa arte é, também, a nossa ferramenta de trabalho. Por isso nos sentimos muito indignados quando grande parte de pessoas baseadas em um imaginário que tem sobre a atuação dos artistas (como nosso “glamouroso” aspecto facial-corporal sobre os palcos, ou em fotos nas capas de discos, nas revistas, nas telas de televisão, computador, celular)  imagina que o “encanto” do que fazemos já nos satisfaz suficientemente, e que isso já paga o “dom” que nos foi dado “de presente” pelos céus, mas… e todo o resto, os 90% de transpiração??!!

Silvia de Lucca

 

FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em março de 2006 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br