A Pluralidade Nossa de Cada Dia
Até que outra verdade me seja apresentada pela própria vida, tenho cada vez mais forte a convicção de que somente a UNIÃO – ou seja, o reconhecimento, o respeito e a valorização das diferenças, somadas – fará a grande força e a possibilidade de desenvolvimento de todos, e portanto de cada um, tanto no aspecto humano em geral, individual e social, como no profissional, e em muitos outros quanto houver. Sim, pode ser utopia, mas prefiro sonhar com ela, e orgulhar-me desta grife com cara de brasilidade – a da MULTIPLICIDADE.
Lembro-me do magnífico artigo da escritora inglesa Jeannette Winterson, sobre o qual já discorri em meu texto “Círculo Vicioso, ou melhor, Virtuoso”. A respeito do que pretendo agora abordar, ela o introduziu para nós do seguinte modo:
“(…) Espera-se que o mundo em desenvolvimento se desenvolva exatamente como o mundo ocidental e que o Oriente reconheça a superioridade do Ocidente. Falamos sobre respeitar outras culturas, sobre diversidade e diferenças, mas o que realmente queremos é que todos no mundo comprem nas mesmas lojas, desejem ter as mesmas coisas, que pareçam, falem, ajam e vistam-se da mesma forma. Muito do que chamamos “diferença” é mera rotulagem. Mudamos a cor e o número do modelo, mas as peças são idênticas.
(…) O planeta necessita da diversidade (…) A forma como vemos e pensamos sobre nossa economia, sobre capitalismo, desenvolvimento e progresso, acima de tudo sobre como tratamos nosso único lar – esse pequeno planeta azul girando no espaço e no tempo – tem que mudar. (…) Em uma economia mundial que depende de separações, temos a arte, que nos pede para fazer conexões.
(…) Como pode, então, a leitura de um poema, a apreciação de um quadro ou a encenação de uma peça nos ajudar a ver as coisas de outra maneira? (…) É justamente a possibilidade de juntar coisas que não são obviamente correlatas. É isso que a arte faz. Algumas pessoas se enganam e crêem que para ser relevante, a arte tem que ser diretamente política – que o tema é tudo que importa. Isso é um erro. Não é uma questão do tema desta ou daquela peça, mas sim do que a arte É, de sua natureza. Uma obra de arte (…) não é SOBRE alguma coisa, mas É alguma coisa. E o que ela É conecta o que foi separado. Pense em uma obra de arte que signifique alguma coisa para você. (…) Às vezes dizemos: “nunca pensei nisso” ou “nunca me senti assim” ou “isso deu sentido à minha experiência” ou ainda “isso me fez rir, aquilo me fez chorar”. Essas emoções, este entendimentos dos fatos, essas realizações acontecem quando o que foi separado é novamente unido. O papel da arte é pegar diversos elementos díspares e fundi-los em novas unidades. (…) Acredito que um dos motivos pelos quais sempre nos voltamos para a arte e nunca desistimos de continuar criando, é justamente porque através dela reconhecemos a qualidade intrínseca da vida – que tudo está conectado. (…)”
Para que as coisas fiquem coerentes e todos sintam-se incluídos, indubitavelmente, enquanto COMPANHEIROS nesta marcha, vamos nos propor um especial exercício: antes da música ser por nós concebida como esta ou aquela, isto ou aquilo, assim ou assado, daquele ou de outro, daqui ou dali, de hoje ou de ontem etc., entendamos que música é uma EXPRESSÃO ARTÍSTICA como explicado no texto acima, e como tal possibilita infinitas combinações, relações e significados em si, e, melhor, TODOS ESSES SENTIDOS PODEM TER A SUA VEZ EM NOSSAS VIDAS, DEPENDENDO DAS INFINITAS FORMAS QUE ESTAMOS COMBINADOS, RELACIONADOS E SIGNIFICADOS EM NÓS MESMOS EM UM DETERMINADO MOMENTO.
Como assim?! É simples, vou tentar fazer-me entender através de alguns poucos exemplos:
Entre nós, o termo “música POPULAR” remete a muitos significados, uns positivos, outros negativos (muitos inclusive equivocados), e assim, automaticamente, passa a ser uma adjetivação excludente mesmo que inconscientemente. As chamadas “música CLÁSSICA” e “música FOLCLÓRICA”, para ficarmos na mais comum classificação ocidental, também possuem em nossa realidade inúmeros significados tais e quais aqueles, alguns corretos e outros absurdos.
Abandonando um pouco o princípio maniqueísta do “isto OU aquilo”, o fato, por exemplo, de se gostar ou preferir música popular não tem que ser sinônimo incondicional de não ouvir ou não gostar das demais. Este tipo de música é tão somente uma especialidade – um jeito tal de combinar, de relacionar e de significar de um determinado momento. Há muito constato que aquelas classificações só fazem nos SEPARAR e, consequentemente, nos ATRASAR. Na minha visão, esta histórica divisão (neste caso, entendida como “fronteira”) revela antes de tudo uma falta de familiaridade, portanto de desconhecimento, de preconceito, de todos os lados. Acho que Villa-Lobos pôde provar que essas diferenças podem conviver maravilhosamente, somarem-se enfim. Já puderam ouvir o seu “Trenzinho Caipira” na forma original (que faz parte da Bachiana Brasileira nº 2)? Existe coisa mais significativa de nossa PLURALIDADE?
Imagino que muitos de vocês estejam plenamente de acordo com tudo isto que acabo de argumentar e que, como eu, entendam que dentro da usual e generalizante sigla MPB (Música Popular Brasileira) possam estar incluídas também as músicas do norte e do sul do país (e não somente as do sudeste!). Assim como também entendem que música “internacional” inclui mais, mas muito mais (!), do que somente a norte-americana, daquela forma denominada normalmente nas rádios brasileiras. São esses outros dois exemplos um dos mais comuns entre as denominações excludentes que tenho testemunhado.
A partir de agora proponho a vocês um alerta: denominações, mesmo que ditas informalmente e sem intenção segregadora alguma, chegam muitas vezes a firmar uma mentalidade, além de enganosas, injustas. No caso da música, incontáveis estilos e gêneros existem desde que o homem é homem, e continuam sendo feitos por todos os povos, em vários cantos do planeta, e assim há de continuar, se os céus permitirem!!! Agucem a curiosidade neste sentido e façam uma viagem artística; permitam-se sair do aqui e agora musical, e provarão a gostosa sensação de liberdade ilimitada que podemos usufruir mesmo enquanto homens sem asas. E não deixem de considerar sobre o que aquela autora citada acima presenteou-nos de um modo especial nas seguintes frases de um pronunciamento:
“Tudo no Ocidente está ligado à ideia de ‘coerção para comprar’, que vem disfarçada de “opção do consumidor”.
“Quando nossa imaginação está ativa, quando estamos em contato com aquilo que nos conecta uns aos outros, com o passado e o planeta, aí não só mudam nossas prioridades, mas como também criamos uma base mais sólida para avaliar prioridades alheias – especialmente no caso de nossos governos e empresas, que querem ditar como devemos viver.”
“O capitalismo não pode controlar a arte de nenhum modo e é por isso que tenta desesperadamente fazer justamente isso, seja tratando arte como um commodity, esperando arruinar os próprios artistas com excesso ou muito pouco dinheiro, ou tratando-a como algo trivial, chamando-a de artigo de luxo, dizendo que não tem importância, que nada tem a oferecer, que está falida, que não tem sentido, que é um desperdício de tempo e dinheiro.”
E assim me despeço, esperando que encontrem oportunidades para alçarem grandes voos, mesmo que lhes cortem as asas!
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em novembro de 2004 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br