As Professorinhas do Brasil
Fui metida a ser professora desde muito cedo. Fazendo uso de minha lousinha verde eu adorava dar aulas no quintal para os alunos que eram invisíveis, mas naturalmente tinham nome. Lembro-me que dava as aulas em pé, e era sempre muito enfática, do mesmo jeito como faço hoje, normalmente empolgada. Nas horas de “brincar a sério” eu dava aulas quase que diariamente para a minha irmã, tanto que aprendeu com quatro anos e meio a ler e escrever. Já naquele momento ela se esforçava para decidir entre SS e Ç, entre S e Z, entre X e CH, o que quer dizer que na hora do ensino, além dos caprichos de uma irmã mais velha, a meticulosidade sempre me foi cara, raramente considerando detalhes como “meros” detalhes. Inclusive, devem concordar comigo que na arte, no esporte e na ciência, o “detalhe” faz toda a diferença.
Na minha infância eu considerava imprescindível dividir também o micro conhecimento musical que ia obtendo durante as aulas de piano, e novamente a minha irmã era a vítima, além de acrescentar uma segunda: minha mãe. Elas tinham caderninho e tudo, e pareciam levar o estudo bem a sério, ou talvez a dedicação fosse para não me desapontar, ou melhor, para não pagarem o preço de minha provável persistência em tentar convencê-las de que conhecer música era importante. O mais curioso era que se tratava de um estudo de música silencioso, já que então não havia instrumentos em casa (por três anos estudei piano na casa da professora), e eu ainda não concebia que aquelas notas musicais que conhecia, tocava e ensinava podiam ser simplesmente cantadas.
O hábito de ensinar adquiriu mais espaço, mais sentido e mais responsabilidade quando adolescente substituí a maestrina na bandinha/coral que eu participava junto com mais umas 30 crianças. Ali fiquei três anos, após acrescentar ao tradicional ensaio, uma aula de música por semana. Paralelamente eu também dava aulas de música a alguns poucos amigos e colegas, para os quais eu oferecia espontaneamente essa prática, pois achava sinceramente que a informação, e o bem que sua aquisição pode trazer, poderia pertencer a todos, e que seria muito bom se assim o fosse, tratando-se de um recurso a mais à disposição, para ser usado como se deseja, inclusive até rejeitado no caso de não ser útil ou enriquecedor de algum modo. Nesse tempo o meu saber musical ainda engatinhava, mas a minha experiência diária e o ensino que eu ministrava já eram felizmente acompanhados de sons: eu tocava piano há alguns anos, e existiam ainda os instrumentos de sucata usados na bandinha que eram feitos com a ajuda dos adultos. Havia ainda aqueles colegas que tocavam violão e cantavam as canções da moda, e sempre me convidavam a participar cantando ou somente para observar e fazer críticas às suas performances. Uma coisa que me recordo bem é que muitas vezes não estava musicalmente satisfeita com a interpretação deles ou do grupo de crianças, e também com relação a algumas músicas que eu ouvia no rádio ou parque infantil, mas não sabia definir o porquê. Contudo, isso não me preocupava exatamente, uma vez que me faltavam referências e dados técnicos dos quais eu sequer supunha existir; o desconforto sonoro só servia para que eu buscasse respostas sobre aquelas “minúcias” musicais em meu interior, com tranquilidade.
Mais tarde, quando morava em um bairro central, comecei a dar aulas particulares de música, então com 17 anos, dessa vez com objetivo profissional. A satisfação se resumia nos alunos motivados, que como eu sentiam prazer na aquisição de conhecimento e aguardavam com ansiedade cada um de nossos encontros. Uma vez na Suíça tive um testemunho legal sobre isso vindo da mãe de uma aluna; ela disse que minhas aulas pareciam uma festa ou uma aula animada em grupo de aeróbica: – “Vamos lá pessoal, caprichem, um – dois, um – dois, um – dois!”
E a professorinha seguia sempre determinada: além das aulas particulares, começaram as aulas em escolas de música; aulas para crianças pequenas e grandes, além de adolescentes. Mais tarde comecei com os adultos, até que com estes houve uma forte identificação. Adulto que opta em estudar música não é induzido por ninguém, o faz simplesmente por interesse próprio, e normalmente com muita garra, pois não raro quer recuperar o tempo perdido. Adulto costuma ter consciência de seu interesse, e dentro da imensa área da música consegue melhor detectar com o que se identifica mais. Adulto tende a ter maior poder de concentração e fôlego para discutir os tais “detalhes” artísticos com profundidade. Adulto já viveu muitas situações que lhe mostraram que conhecer música vale a pena, sem contar que, contente, descobri que ele sempre tem uma criança curiosa e musical dentro de si, que apela em ser encantada.
E assim, adulta que eu também já era, e envolvendo-me cada vez mais com alunos dessa vasta faixa etária, sobretudo com aqueles que iniciavam o estudo musical, acabei concluindo na prática que, em geral, o que mais desejam é desmistificar o universo musical por meio da obtenção de informações sobre a linguagem, além de ter a escuta musical despertada, sensibilizada e enriquecida de maneira prazerosa, o que vai ao encontro do meu interesse também.
O fato é que sempre me incomodou que o ensino de música no Brasil fosse tão restrito, voltado quase unicamente àquele que almeja um envolvimento prático com ela, inclusive profissional, fazendo com que, para a maioria, a linguagem musical permaneça desconhecida, estranha, considerada difícil, um mito, desvendável somente por uma minoria privilegiada. Sempre pretendi democratizar o ensino da música, possibilitar a todos os interessados uma aproximação com ela, sem mistérios, procurar fazer com que se possa ouvi-la mais profundamente, simplesmente por ser estimulado a isto. Gosto de fazer com que descubramos juntos o seu funcionamento, que ouçamos sem barreiras, e brindemos o final com uma boa reflexão.
Ouvir tristes relatos de adultos sobre a falta de oportunidade de ter estudado música anteriormente, e o ressentimento que isso provoca, faz-me interessar sempre mais em reverter essa situação dentro do meu micro universo. Vejam um exemplo, trechos de uma mensagem que me chegou recentemente via e-mail, vinda de uma mulher de 30 anos:
[…] música sei que será meu futuro, um sonho desde pequena que tive que sufocar, por outros motivos. […] O ano passado fiz um estagio no CECCO Ibirapuera, e participei de várias oficinas, […] e entre elas participei do coral cênico cidadãos cantantes… e achei bárbaro. Observei como a música tem poder de reverter situações de depressão, problemas psicológicos […] Comecei a enxergar uma possibilidade de aproximação com o meu sonho, que sempre foi música ([…] eu tinha 7 anos quando descobri que gostava de cantar, mas a vida foi meio enrolada pro meu lado… rs, um processo de transformação muito intenso, onde sempre precisei trabalhar para a sobrevivência). Quando eu era adolescente, sempre procurava escolas gratuitas para aprender música, mas nunca conseguia, as portas sempre se fecharam para mim, a única escola que consegui na época foi em Santana, mas não pude seguir devido não poder pagar o transporte, enfim, tive que seguir por outro caminho […]
Com 18 anos, ganhei um violão […] e então, comecei a estudar sozinha, difícil, até hoje toco péssimo, mas descobri que sou compositora, anônima, sem valor para a sociedade, mas sou, e durante muito tempo escondi isso de tudo, devido a não ter apoio, […] e desde o ano passado, passei a fazer canções educativas, que falam de desigualdade social, que falam sobre crianças abandonadas, que falam da importância da escola, enfim, eu trabalho durante o dia e à noite respiro música… mas, talvez por medo, [..] sempre limitei para alguns amigos e paredes do meu quarto […]
[…] tudo que tenho são livros que estou lendo para conhecer melhor o assunto, mas existe termos que não consigo identificar […].
Gostaria de dizer a essa moça que enormes limitações (e frustrações) também enfrentamos nós interessados em reverter o quadro socioeducativo cultural nacional e encontramos barreiras as mais estúpidas. Uma das maiores é a mentalidade tacanha de alguns que acham natural que à grande população bastaria o acesso à alimentação e moradia para a honrá-la enquanto ser humano, e pior, não concebendo que esses bens básicos devem ser conquistados – uma vez propiciadas as condições e ferramentas minimamente adequadas -, pois somente através da dedicação continuada e do envolvimento direto com o fazer, se é capaz de sentir o indescritível sentimento de respeito, de dignidade, de autoconfiança e de vitória.
Nessa altura do processo histórico, é evidente que o sistema capitalista que temos internacionalmente experimentado demonstra não estar realmente interessado em investir para toda a finalidade até aqui descrita. Grande parte de nossos idealistas, movidos pelo sentimento mais genuíno de “professorinha”, esperam que, sejam quais forem os nossos governantes, eles se esforcem minimamente para ao menos não atrapalhar o nosso poder de ação que busca construir sem milagres, mas com confiança e trabalho, uma transformação profunda que de fato convenha à maioria, justamente considerando as “minúcias” de nossa realidade.
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em outubro de 2006 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br