Classificações Danosas e Danadas
Ontem ouvi uma frase que detesto. Não foi a primeira vez e certamente não será a última. “Ela é negra, mas muito limpinha”, disse a senhora de uns 75 anos, com ar um tanto esnobe (sintomático!). Estava divulgando as habilidades de uma cozinheira, e quando se referiu a ela daquele modo, posso jurar que, sob seu conceito, estava sendo “politicamente correta” e fazendo um louvável elogio. Sei que para algumas pessoas essa colocação nada tem de questionável, e ainda nos dias de hoje passará com muita naturalidade pelos ouvidos e julgamentos de muita gente, até perante muitos jovens que estão sendo levados a refletir a respeito de classificações esteriotipadas e/ou equivocadas que se atribui àqueles que nos cercam e mesmo àqueles com os quais nunca tivemos contato direto. Nessa “simples” frase podemos detectar dois aspectos que merecem destaque: Por que classificar uma pessoa pela cor nesse preciso contexto? Ou, perguntando de outro modo, o que a cor da pele carrega de significado nessa situação específica? Se estivéssemos falando de textura e formato de cabelo, talvez fosse o caso (Ela é negra, mas tem cabelo liso), mas sobre habilidade na cozinha para fazer salgadinhos… !!! Talvez também fosse o caso se estivéssemos conversando sobre a boa qualidade dos vatapás e acarajés feitos por negras bahianas, mas mesmo assim, correríamos o risco de estar fazendo uma generalização que não condiz (mais) com a realidade (atual), e não passasse de uma suposição tida como consenso, não raro mantida por desinformação. O segundo ponto é o porquê daquela senhora ter utilizado a conjunção “mas” na frase que disse, como que caracterizando uma exceção, do tipo: a maior parte dos negros não é limpa, MAS essa é. Não sou conhecedora de nossa história, mas creio que os negros que para cá foram trazidos eram tão limpos ou tão sujos quanto os brancos que para cá vieram (considerem inclusive a noção de higiene da época), e ambos aprenderam a banhar-se diariamente com os nossos índios. É a esta conclusão que chego após ter vivido na Europa, e ouvido relatos de pessoas que visitaram países da África.
Penso que, considerando termos entrado no Terceiro Milênio do calendário que seguimos, poderíamos no mínimo passar a considerar a possibilidade das classificações dirigidas aos seres humanos e seus caracteres aparentes estarem desatualizadas, e demonstrar essa dúvida ou possibilidade, com um mero “talvez”, “acho que”, “pelo que se diz”, “é possível”, etc.
Essas classificações as quais quero me referir, mesmo que de aparências tão neutras e sem “segundas” intenções, permeiam em demasia o meio musical também, e do mesmo jeito revelam desinformações, preconceitos, desavenças, e levam muito mais a mal entendidos e danos, que a benefícios para a classe e para o público em geral. Vejamos algumas delas, que mais confundem do que esclarecem: Música Caipira, Música Brega, “New Age”, “World Music”, Música Clássica, Música Antiga, Música de Vanguarda, Música Eletrônica, Música Pop, etc, etc, etc.
Classificações não são dogmas escritos em alguma Bíblia ou Alcorão, e nem definidas e delimitadas leis que constam em alguma Constituição. Ao contrário, elas muitas vezes são mutáveis até mesmo durante um determinado período de tempo e em um determinado território. Assim como as palavras, as classificações são reflexos diretos de uma mistura de fatores, incluindo valores, gostos, conhecimentos, influências, modas, etc. Desse modo, elas sofrem múltiplas variações segundo critérios individuais e sociais de quem usa e quem ouve, e mesmo segundo a conveniência do momento. Existem, inclusive, classificações que caracterizam deturpações propositais, é bom que se diga, e são conduzidas para cá e para lá conforme se caracteriza o poder político e ideológico. Sabiam, por exemplo, que em diferentes lugares dos Estados Unidos, qualquer uma das várias músicas brasileiras são catalogadas como Música Étnica? Bem, é fácil de entender, aquele povo não raro se vê como parâmetro para tudo, e uma vez se distanciando do auto-modelo que tão intensamente divulgam, tudo o que resta é “exótico”, “étnico”, etc. [Aliás, a classificação “povo” que acabo de usar também está sendo revista por considerado uso pejorativo, talvez agora fosse melhor substituir o termo por alguns similares].
Acrescido ao que foi exemplificado, e dentro da mesma razão, está o fato de músicas incluídas em determinada classificação serem tomadas em si, e somente por isso, independente de suas características próprias, como “melhores” ou “piores”, “feias” ou “bonitas”, “modernas” ou “antiquadas”, o que pode ser completamente enganoso. No senso comum a música transmitida por meios eletro/eletrônicos é mais moderna que aquela tocada por instrumentos acústicos, mas esquecemos de considerar que a tecnologia também diz respeito aos instrumentos acústicos, que estão em constante aprimoramento. No senso comum a música clássica é da “elite”, e a popular é do “povo”, e eu adoro dar dados que contrariam essa rigidez. No senso comum o samba é de origem negra, mas exclui-se nessa classificação a forte influência européia das melodias desses mesmos sambas. Vejam por exemplo a gasta terminologia “música internacional” usada na grande mídia. Na prática ela é exemplificada em grande parte das vezes pelas músicas estadunidenses, tanto que uma pessoa pouco esclarecida perguntou-me certa vez: – “Como se chama mesmo aquelas músicas em inglês? Ãhhhh… Música internacional, não é?!” (Observem, aliás, que o “em inglês” refere-se em verdade ao texto, e não à música). Pergunto-me que definição ela daria para uma música que ouvisse em japonês, hebraico ou espanhol, imagino que não seria “Música Internacional”.
Querem ver uma classificação tão usual, mas complexa, que diz tudo e não diz nada? A famosíssima sigla MPB (Música Popular Brasileira), que está na boca de tantos. Ela não significa sempre a mesma coisa. Um ótimo exemplo, recente, é o trabalho musical realizado pelo grupo Barbatuques. Tradicionalmente a música que fazem (percussiva, principalmente com o uso do próprio corpo) não se encaixaria na definição MPB, mas mesmo assim foram vencedores de um concurso que julgava esse(s) gênero(s) – Prêmio Tim de Música 2006 -, o que causou surpresa até ao próprio grupo, pois embora tenham se inscrito, não tinham convicção que seriam aceitos como tal, muito menos que ganhariam o prêmio. Recentemente um articulador das nossas lutas políticas referia-se a nós, músicos em geral do país, como sendo representantes naturais da MPB. Eu entendia o que queria dizer inconscientemente com aquilo (todos éramos brasileiros e lutávamos pela difusão da diversidade que a nossa amplíssima cultura representa), mas com essa nomenclatura difusa ele estava excluindo, ao menos no senso comum, uma grande porcentagem de músicos brasileiros que são definidos como de tantas outras categorias e vertentes, até que eu lhe chamei a atenção para o fato, perguntando se não poderia trocar o termo MPB simplesmente por Música Brasileira, com o que concordou. E esse é um dos princípios que causam uma parte das inadequações que procuro apontar, o automatismo no uso da classificação.
Outro aspecto enganoso que envolve as classificações, e muito comum, é considerar que quando se é especialista em uma delas, naturalmente se é inimigo mortal da estética das demais. Guardando as devidas proporções, isso é tão verdadeiro quanto um engenheiro mecânico gratuitamente não gostar do engenheiro eletrônico, que por sua vez não gosta do engenheiro civil. Lembro-me muito bem de um colega que conheci estudando Schömberg, Webern e Stravinsky na Europa (ele me mostrou as partituras e discos que analisava), mas de outra parte ele financiava seus estudos naquele continente com as composições estilo “eróticas” que à época compunha, gravava e vendia com certa facilidade no Brasil, especialmente na região Nordeste.
Acho compreensível que o ser humano tenha necessidade de agrupar as coisas e fenômenos que percebe para lhes dar sentido e facilitar a observação, memorização e compreensão do mundo. Entretanto, através da maturidade deveria chegar à conclusão de que a vida não é um simples “8 ou 80”, e que nem tudo deve ser engavetável com uma etiqueta que mesmo após amarelada com o tempo, servirá para definir aquele conteúdo como outrora foi analisado e até julgado. Do mesmo modo como quando se faz limpeza nos armários se separa um monte de coisas que não tem mais razão de estarem ali, terão outros destinos, inclusive a lixeira, o mesmo pode ocorrer com o nosso parecer a respeito de ideias, afinal, como já escrevi uma vez, parece que somos fadados ao aprendizado até a morte.
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em novembro de 2006 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br