Identidade Feminina – Um Testemunho Pessoal

O que tenho observado nas realidades artístico-culturais que frequento desde minha dedicação à atividade da composição, é que o material propriamente musical das obras não revela qualquer identidade feminina de suas autoras, diferente do que muitos ainda supõem. Ao contrário, percebo sim que este diferencial surge por vezes, e somente, em argumentos, justificativas, posturas ou comportamentos, sejam eles provenientes de compositorAs ou de compositorEs. Talvez a sutileza ou subjetividade da linguagem musical subsista a isto que mais me parece um pré-conceito generalizado, ao menos nos dias de hoje e nas culturas urbanas ocidentalizadas.

É fácil observar que as mulheres brasileiras compunham até meados do século XX quase que exclusivamente para piano solo, ou canto e piano, justamente porque estes eram os recursos existentes dentro das casas em que as mulheres “de família” deviam estar fixadas na maior parte do tempo. Mas é de se perguntar se, proporcionalmente, elas escreveram mais para estas formações do que os compositorEs da época. Também é de se perguntar se o resultado propriamente musical, sonoro, do que escreviam era explicitamente feminino. O que dizer do que produziu Ernesto Nazareth, por exemplo, se comparado a Chiquinha Gonzaga? Neste sentido, pode-se inclusive especular se os homens criadores de modo geral não idealizavam as suas obras (e ainda idealizam, talvez em menor escala) para o que eles julgavam como universo feminino, e as mulheres as recebiam inquestionavelmente como tal. Seria o caso, por exemplo, de determinadas literaturas “água com açúcar” ou “cor de rosa” ou “ingênuas” existentes no mercado; seriam elas, em sua maior parte, escritas por mulheres?! Vide os folhetins em geral, M. Delly e as novelas de rádio e televisão, ainda hoje consideradas tão femininas, são sempre ou em sua maioria escritas por mulheres?!

O masculino e o feminino caracterizam-se nas obras de arte de um modo muito mais sutil, ao meu ver, porém complexo: a considerar que, segundo Jung, todos temos incondicionalmente o lado masculino (“animus”) e feminino (“anima”), variando somente de proporção em cada ser. Classifico segundo este critério estilos, gêneros, compositores, intérpretes, e mesmo ritmos, instrumentos e formas. Considero, por exemplo, o estilo Impressionista e o gênero Modinha como femininos; a flauta e a trompa como femininas, a suite como feminina, independente é óbvio de seu criador. Está certo que aí se coloca uma outra questão: sob que critério isto ou aquilo seria feminino ou masculino? Um par de vezes já ouvi que meu estilo musical é masculino, ou que escrevo como um homem (!).

Creio que para esta concepção deva ser tomado o que se estabeleceu no consciente coletivo (ainda parodiando Jung), ou seja, no que a humanidade como um todo foi concebendo, em todo o seu tempo e vivência. Deste modo, a leveza, a sutileza, a delicadeza, a sensibilidade, a meticulosidade, a intuição, por exemplo, seriam características tidas como femininas. E indo além neste ponto de vista, é totalmente possível que o criador, homem ou mulher – seja consciente ou não, por intenção ou não, por compensação, conflito, sublimação, desafio, vingança ou simplesmente pelo prazer de desbravar universos pouco ou nada experimentados – procure expressar em sua arte justamente o seu lado sexual não expresso em evidência ou em maior porção. O compositor Gilberto Gil admitiu em sua canção Super-homem “minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora”, por alguns interpretado erroneamente, assim analiso, como uma declaração de homossexualidade.

Um outro aspecto a ser considerado aqui, o qual constantemente surge em discussão, diga-se a propósito, é a razão pela qual existem muito mais homens do que mulheres na atividade composicional. E indo além: haveria algum condicionamento social para isto que é um fato relevante? É sabido que até há pouco tempo a atividade artística no Brasil sofria muita discriminação sobretudo por desconhecimento, independente do sexo de seus seguidores, mas ainda pior para a mulher. Contudo, não vejo que isto seja uma substancial razão que explique a escassez de compositorAs, e muito menos a razão maior. O que cada vez mais me convence como justificativa para que tão poucas mulheres se dediquem a essa atividade (inclusive refletindo sobre minha relativamente pequena, embora constante, produção) é da própria natureza feminina ou de seu modo peculiar. É importante aqui esclarecer que, se não vejo nas obras musicais de mulheres, características evidentemente femininas enquanto linguagem, não significa que elas não existam em essência: vejo sim distinção entre homens e mulheres, e creio que isto vá além de condicionamentos educacionais e sociais que certamente existem. Observo constantemente, por exemplo, o quanto é difícil para uma mulher ter uma visão focada e concentrada em um só ponto. Normalmente ela se subdivide, sua atenção é distribuída entre um grande leque de pessoas, assuntos, atividades; e além de ser normalmente capacitada para isto, percebo que existe aí embutido um tipo de prazer e mesmo de valor: o de constatar a sua potencialidade múltipla. Entretanto, no caso da elaboração de uma obra de arte, essa característica parece ser um inimigo natural, uma vez que a atividade necessita de dedicação absolutamente integral no que seu processo tem de criativo, tanto de intenção como de pensamento, reflexão, emoção, dedicação, etc., e no caso da obra musical, em determinados segmentos estéticos, envolvimento de muitos meses ou até anos. Caso contrário, o objeto artístico deixa de caracterizar-se enquanto tal, inteiro, completo, exclusivo, e consequentemente não proporcionando um sentimento de realização àquele que o gerou. Diferente de uma atividade qualquer, a criação artística ocorre ininterruptamente, mesmo enquanto se está aparentemente parado, inclusive durante o sono: o inconsciente não descansa jamais.

Recentemente li uma historinha que sintetiza bem este meu parecer, na qual descreviam tudo o que a esposa percebeu a ser feito urgentemente em casa (guardar alimento perecível na geladeira, colocar comida para o cachorro, pregar botão no uniforme do filho, telefonar para saber se a mãe chegou bem em casa, etc.), e não se conteve em realizá-lo, desde que anunciou ao marido que assistia televisão, que iria deitar-se para dormir antes dele porque estava muito cansada. Conclusão, ele acabou indo dormir antes que ela, surpreso que ela ainda não havia ido se deitar. E a razão desta narração caracterizar-se como uma piada é justamente o que ela tem de verdadeiro e provocadora de perplexidade. Propicia inclusive a formulação da seguinte questão: que especial habilidade uma mulher deve possuir para conseguir desligar-se de tudo e de todos para vivenciar a real gestação de uma obra artística com toda a integração que ela por si exige. Isto justificaria, entre outros tantos fenômenos, porque há mais mulheres autoras nas artes plásticas e na literatura, em que as respectivas atuações não exigem um tempo necessariamente grande de exclusão de todo universo à volta. Neste sentido, trata-se acima de tudo de um impulso interior que deve ser controlado e direcionado, ao menos durante o período de criação propriamente dito. Ao se imaginar um outro fim para aquele quadro, será que aquela mulher conseguiria dormir normalmente, e mais, sem ansiedade ou sentimento de culpa, caso tivesse se recusado a atender tudo aquilo que viu como tarefas que a solicitavam momentaneamente? Neste sentido eu não compartilho da justificativa alegada por um grupo de mulheres, de que não encontram compreensão, apoio, circunstâncias ou condições apropriadas para um trabalho de criação, afinal, muitos homens também não têm esses privilégios. E voltando à narrativa acima, não foi ninguém que pediu à mulher que realizasse aquelas tarefas, ela inclusive não pediu colaboração a ninguém: tomou tudo aquilo para si automaticamente, como compromissos próprios, considerando ao menos que poderia realizá-los melhor ou mais rapidamente. Não que empecilhos não existam, mas nada seria um obstáculo intransponível caso tivesse que alimentar um filho. E aí vemos um outro forte aspecto, a função feminina enquanto protetora de todos aqueles pelos quais se sente responsável. E nesse círculo encontram-se, em maior ou menor proporção, familiares, parentes, amigos, colegas, vizinhos, etc.

Levando tudo isto em consideração, vejo como muito natural que as mulheres têm se saído cada vez melhores profissionalmente, nas mais diversas áreas, com maior autonomia e confiança entre outras coisas. São méritos próprios conseguidos com muito empenho através dos tempos, mas acima de tudo com experiência e mudança de mentalidade. Entretanto é também com naturalidade que constato o quanto as mulheres (ainda?) não conseguem doar-se integralmente a si próprias para que delas nasça uma autêntica expressão pessoal artística musical com menor esforço.

Silvia de Lucca

FONTE: Esse texto foi resultado da solicitação abaixo:

Prezada Silvia,

Sou Joana Cunha de Holanda, aluna do doutorado em Música da UFRGS e estou fazendo um trabalho sobre mulheres compositoras. Em um artigo que li recentemente, Encuesta: La Identidad Musical Femenina en Relación con el Condicionamento Social, em livro compilado por Marisa Manchado Torres, a autora discute os depoimentos de diversas compositoras espanholas sobre a identidade musical feminina.

Estou enviando a mesma pergunta que foi feita por Machado em seu artigo para compositoras no Brasil e pergunto sobre a possibilidade de você contribuir com um depoimento sobre a sua experiência para esta pesquisa.

A pergunta é a seguinte:

“Você pensa que o fato de ser mulher tem alguma relação com o seu pensamento musical e até que ponto houve ou há um condicionamento – positivo, negativo, ou neutro- social?”