Diversão tão Inocente
Caros leitores,
Não sei se irão concordar comigo, mas às vezes é muito duro ter que tomar atitudes equilibradas, diplomáticas, sensatas, amigáveis, diante de fatos que nos parecem obviamente ERRADOS. Talvez seja um dos preços que temos que pagar para nos autoqualificarmos como Homo SAPIENS.
Há três dias que estou com uma “rave”, quero dizer, com uma “raiva” tão grande, que fica bem difícil ser razoável neste momento em que lhes dirijo a palavra. Deixem-me contar o que vivenciei tão especialmente nesse final de semana.
Eu estava junto com parentes e amigos em um sítio que escolhemos para curtir a natureza durante quatro dias, com tudo que ela nos oferece de presente: ar puro e perfumado, céu aberto, muito verde, alimentos menos ou nada intoxicados, silêncio, ou melhor, sons de passarinhos e de outros animais, do vento, de trovões. No sábado alguém percebeu um som indefinido, contínuo, que parecia bem distante. Pensamos em algum motor e não demos importância.
Depois de uma noite pesada de sono acordamos com uma música “sintética” (ou barulho, para alguns) que parecia vir de um carro parado. Estariam anunciando um produto?! Ou talvez um procedimento comum de jovens que parecem querer marcar território através do espaço que o som escolhido por eles ocupa?! Tentava-se adivinhar que esquisitice era aquela.
O danado do som permanecia, e permanecia, e se repetia tanto, tanto, que parecia um velho LP com algum defeito como era comum existir, fazendo a agulha voltar para o mesmo lugar continuamente. E mais estranho, parecia aumentar de volume.
Pessoal… só vocês vendo, ou melhor, ouvindo! O volume aumentava sim, aproximadamente a cada meia hora. O som era aquele mesmíssimo, idêntico. Nós, músicos que estávamos no sítio, analisamos musicalmente aquele “OVNI” (Objeto Voador Não Identificado): meros dois ou quatro compassos que se repetiam ininterruptamente por cerca de 15 longuíssimos minutos (!!!), seguidos por alguns pouquíssimos compassos (cerca de 15 segundos de duração) onde ocorria um ritmo mais brando, com poucas notas e quase nenhuma variação timbrística. Aliás, o timbre era sintetizado, e por isto, e só por isto, classificado como Música Eletrônica, ou seja, sem utilização dos “velhos” instrumentos acústicos como flauta, violão, violino, e nem elétricos como a guitarra e o teclado. O gênero era um da moda (claro!), o Tecno.
Após cerca de três horas deste sofrimento, já imaginávamos bem do que se tratava: uma “big” de uma festa.
A nossa indignação compreendia basicamente três aspectos:
– Nós viemos para cá justamente para fugir dos ruídos de uma vida urbana; este som, desta forma, não faz sentido neste lugar. Aliás, acho que cabe a pergunta: qual é o sentido disto e em que local se enquadra bem?
– Como devem estar os ouvidos (e os corpos) das pessoas que estão nas proximidades das caixas de som? No mínimo já um tanto surdas. (O meu irmão é dono de um “pub” onde há música ao vivo e aos 39 anos de idade já havia perdido 20 % da audição.)
Por que somos obrigados a passar por isto, forçados a ouvir durante horas, seja o que for, que não queremos?
Decidimos então telefonar para a polícia. O atendente gentil disse que se tratava de algo que deveria ser resolvido com a prefeitura. Claro, que ingenuidade a minha! Telefonando para a prefeitura, o atendente gentil confirmou que se tratava de uma função deles, mas que precisariam do aparelho para medir os decibéis do som da tal festa, e que este serviço não funcionava aos finais de semana (!!!). Claro, que ingenuidade a minha! Sugeriu que eu voltasse a contactar a polícia e pedir se eles não poderiam ir até o local para tentar amenizar o problema. Já sabedora que não adiantaria nada, resolvi telefonar por curiosidade e conferir até onde iria o absurdo da situação, e foi mesmo bom, pois colhi informações valiosas para o nosso grupo e para lhes passar agora. O atendente gentil da polícia disse-me então que eles possuíam alvará para realizar a festa até às 18:00 horas (Meu Deus, ainda era meio dia!), e assim não poderiam acabar com ela. Eu disse que o objetivo não era este, e nem tirar a “música”, mas simplesmente que se diminuísse o volume conforme determina a lei, e que a dita cuja servisse somente para os interessados ouvirem. E ele: – “É …, mas não tem jeito, eles têm alvará!”. Como se eu nada tivesse explicado sobre a lei. Nesta altura, consciente que se tratava de uma “rave, open air” iniciada mais discretamente no dia anterior – cujo nome em inglês significa sintomaticamente delirar, berrar, falar insensatamente, com entusiasmo, ao ar livre – toleramos aquilo com muita dor até as 17:30 horas. Ah, sim, um pequeno detalhe: o tal local festivo ficava a dois quilômetros de onde estávamos; dá para imaginar a quantidade de decibéis?!
Durante este enorme período refletíamos sobre muitas coisas relacionadas ao fato, sobre o perfil das pessoas que se identificam com um evento dessa natureza, no porquê e como participam dele, sobre o seu significado cultural, na liberdade e limite de cada um que vive em sociedade, sobre os corpos e mentes expostos a esta aberração, inclusive os animais e plantas. Como sempre digo aos meus alunos, há que se considerar que som não é algo somente imaginário ou psicológico, são ondas sonoras em movimento, que embora invisíveis são concretas como o ar. Isto seria, inclusive, um tema para um novo texto: os efeitos nos organismos vivos causados pela propagação de ondas sonoras em suas diferentes formas. (Há experiências muito interessantes sobre este assunto.) E ainda, no meio de tantas e profundas considerações, havia aquela que se caracteriza como uma das maiores responsáveis por essa prática, ou talvez a maior, infelizmente por tão poucos consciente, qual seja, a questão mercadológica, como sempre.
Considerem o quanto custa este “produto sonoro” para quem o fabrica. Vocês poderiam pensar que não custa nada ou quase isso, uma vez que não há compositor, arranjador, instrumentistas e nem direitos autorais destes envolvidos. Basta um bom e criativo técnico em informática que saiba captar, salvar, realizar meia dúzia de alterações de áudio e reproduzi-las. Agora pensem no quanto se lucra com tudo isto, vejam um anúncio que localizei: “UMA RAVE COM 10 HORAS DE DURAÇÃO E COM VARIADAS ATRAÇÕES COMO MALABARES, PIROFAGISTAS, CYBERS, EXOTIC DANCERS, AREA DE ALIMENTAÇÃO, ETC…”
Uma vez em casa, usufruindo da vida normalmente urbana, busquei na internet o termo “rave” e olhem, por exemplo, o que encontrei:
“ESTA COMUNIDADE É SÓ PARA A RAPAZIADA ADRENADA QUE CURTE FESTAS DE MUSICA ELETRONICA !!!!! FIQUE SABENDO DAS MELHORES RAVES DO PLANETA !!!! E É ISSO AI RAPA MUITA CURTIÇÃO E VAMO P/ O PSY TRANCE !!!!!!”
Ou seja, nada mais do que a velha busca de algo novo que na essência é velho!
Interessante e sintomático também foi o número de palavras encontradas no idioma inglês relacionadas a este tipo de evento, vejam algumas e saibam do significado: PSYTRANCE, PSYCONTROL, OPEN AIR, SPECTRAL MOON, INDOOR, TECHNOCLUB, THE DRUMMER, DAVE, FUSION, TECHNO, PSYDE, GROOVE ATTACK, ELECTRO, ENZYME, INTELLIGENCE, ORBITAL VIBE, RECORDS, PARTY, THE INFLUENCE, ANDROID, TRANCENATION, EDITION, VIPS.
E para aqueles que quiserem fugir ou, ao contrário, conhecer e até usufruir de alguns aspectos deste evento da moda, consultem sites onde se encontra muito disso que haverá espalhado pelo Brasil para delírio de uns e tortura de outros.
No final das contas, apesar de ter sido muito grande a vontade de comparecer na referida festa e dar um belo tiro bem no meio da aparelhagem de som alegando auto-defesa, considerei que existe o livre arbítrio de cada um em usufruir do que deseja, até mesmo do silêncio. Contudo, juro a vocês, não teria coragem de obrigar ninguém a ouvir por horas a fio, em alto e bom som, um trechinho da música que considero a melhor, mesmo porque, nem eu mesma suportaria este tipo de droga em forma de fetichismo ou este tipo de fetichismo em forma de droga.
Silvia de Lucca
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em dezembro de 2005 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br