Manifesto em defesa do poder transformador da arte

Festa Literária Internacional de Paraty – RJ, julho de 2005

(Mesa 8 – Arte e natureza – Conferência Zé Kleber)

Jeanette Winterson

Estamos aqui hoje porque acreditamos que a arte pode fazer diferença em nossas vidas.

Estamos aqui hoje porque acreditamos que vale a pena gastar nosso tempo e nosso dinheiro pela arte.

Estamos aqui hoje porque acreditamos que a arte tem algo a dizer para nós – e queremos ouvir.

Mas em um mundo no qual mais uma série de bombas explodiu – desta vez em Londres, minha cidade, ontem – nós deveríamos perguntar o que a arte tem a dizer sobre isso, se a arte possui, afinal, algum sentido em tais circunstâncias.

Acho que temos que fazer uma distinção entre a aguda crise do ataque terrorista – uma crise que precisa de um remédio e de ajuda urgente – e a crise crônica que reside sob ela.

Quando a crise é aguda, a mídia aparece rapidamente, os políticos se reúnem, os noticiários e documentários estão por todos os lados e pareceria um absurdo falar sobre arte diante de tais circunstâncias. No entanto, quando uma crise aguda faz parte do passado, e as pessoas que foram feridas e se machucaram e se chocaram e se desiludiram, procuram por esperança, procuram por uma visão, procuram através da platitude dos políticos, nesse momento a arte pode falar.

Precisamos urgentemente mudar a maneira que administramos o mundo; nossa cultura corporativa, nossas relações internacionais, nosso tratamento do mundo natural e seus ecossistemas. Sabemos que não podemos continuar vivendo desse modo – e ainda assim continuamos a viver desse modo. Livros, pintura, música, teatro existem para nos encorajar tanto a pensar quanto a ver a vida de uma maneira diferente. Quando libertamos a vida da nossa imaginação, estamos livres para imaginar um tipo muito diferente de mundo – e é isso que precisamos e nunca havíamos precisado disso com tanta urgência.

Em 1798 dois rapazes queriam mudar o mundo. Eles estavam decepcionados com o fracasso da Revolução Francesa em criar uma sociedade justa e equitativa em 1789.

Eram políticos, apaixonados e visionários. Sonhavam com a criação de uma sociedade utópica na América; opunham-se a um novo tipo de capitalista: os donos de tecelagens e de minas, que não se importavam com a natureza ou com o homem. Escreveram manifestos e panfletos, mas sabiam que isso não bastava. Fizeram, então, a única coisa que certamente traria mudanças: publicaram um livro de poemas e o chamaram de Lyrical Ballads (Baladas Líricas).

Eram, é claro, William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge.

“Baladas Líricas” realmente não soa como um grito revolucionário. Não é como “Devorem os Ricos” ou como Gabriel O Pensador, em “Tô feliz (matei o presidente)”. Não é um rap ruim. Então o que há de tão selvagem e estranho nesse livro? E por que ele faria alguma diferença? São poemas sobre pessoas comuns – fazendeiros, vagabundos, homens e mulheres que tiveram suas terras usurpadas pela política agrária dos enclosures. Homens que foram arrancados de suas terras e levados para cidades pelo novo sonho e pesadelo emergente: a Revolução Industrial. Esses poemas foram escritos numa linguagem real, falada por pessoas reais. Eram baladas porque baladas eram cantadas em tavernas, recitadas nos mercados de gado, passadas de boca-em-boca, numa tradição que era basicamente oral e não literária.

Eram histórias e músicas contadas e cantadas por viajantes, andarilhos, fugitivos e criminosos, que continham elementos que os dois autores acreditavam serem essenciais à vida: espírito e terra. O espírito humano e o que os franceses chamam de TERROIR, ou seja, a terra sob nossos pés, a relva, as raízes.

Wordsworth e Coleridge tinham sido educados em Cambridge, mas ambos acreditavam que a natureza era a melhor professora. De todos os poetas, pintores e pensadores que estão associados com o Romantismo europeu, Wordsworth e Coleridge podem ser considerados como os verdadeiros predecessores do americano Henry Thoreau, que de sua cabana no lago Walden escreveu o clássico Walden – um livro que o historiador Simon Schama considera como o começo do ambientalismo como conceito.

Acredito que este começo tenha vindo antes, na Inglaterra, no distrito de Lake, com Wordsworth e Coleridge.

É claro que até a Revolução Industrial, que teve início na Inglaterra do século XVIII, a poesia estava enraizada no ambiente rural e não podia ser diferente numa sociedade profundamente agrícola. Todos tinham alguma conexão com a terra – não havia outro jeito – e boa parte das batalhas humanas eram travadas na natureza, primeiro pela sobrevivência e depois pela posse. Desta posse resultava não apenas poder, mas também dignidade, afinal quem quer ficar sujo, molhado e com fome o tempo todo?

Elevar o homem acima da natureza o permitia ter mais do que uma excelente vista: o tornava mestre e através dos tempos em nosso mundo, seja na Europa, América do Sul ou do Norte, África ou Índia, o paradigma dominante nunca foi cooperação e compartilhamento, mas sim ‘quem manda’ e ‘quem não manda’.

A Revolução Francesa, assim como outras revoluções que a antecederam ou sucederam, foram tentativas fracassadas de mudar esse paradigma. Depois de testemunharem o desumano resultado da Revolução Francesa e de assistirem ao crescimento do conservadorismo na Inglaterra, Wordsworth e Coleridge resolveram tentar entender como seria possível mudar a natureza humana. A resposta que encontraram era moderna para a época: a natureza humana e a natureza em si estão entrelaçadas e são interdependentes. Uma mudança verdadeira só pode ocorrer de pessoa em pessoa, onde uma reação individual poderá, de alguma forma e em algum momento, trazer equilíbrio à balança do poder e não incliná-la a favor deste ou daquele grupo, como é o caso normalmente em uma revolução. Um equilíbrio entre indivíduos, nações e entre o homem e a natureza. Era uma ideia irreal e, como se não bastasse, a mudança seria feita através da arte, no caso, com poemas.

Seria muito simplista de nossa parte afirmar que eles fracassaram. Seria muito simples dizer que a arte não muda nada. Mas o fato de todos esses poemas ainda serem publicados 200 anos depois, é uma mostra de que alguma coisa aconteceu e ainda está acontecendo.

Estavam corretos ao afirmar que todas as formas de vida, da formiga ao oratório, estão conectadas. Estavam corretos ao compreender que uma mudança verdadeira é aquela que vem de dentro de cada um – qualquer coisa imposta será temporária ou violenta ou ambos. Mas será que estavam certos ao acreditar que a arte pode mudar tudo? E, caso afirmativo, como ocorreria tal mudança e como se dão essas conexões entre espírito e terra?

Se você acredita que a vida é interior tanto quanto é exterior, então também pode aceitar que a parte interior também merece atenção. O ocidente moderno valoriza o que é exterior, visível, que tenha um custo, que seja um commodity, bens que possam ser comprados ou vendidos, promoções a serem obtidas, operações em mercados livres, dinheiro, dinheiro, dinheiro. As pessoas são julgadas pelo emprego que têm, por sua aparência (se forem mulheres), pelo carro que dirigem, pelas casas que possuem e por quanto dinheiro ganham. Julgamos pelas aparências e somos encorajados a lutarmos pelas compensações visíveis da vida. Espera-se que o mundo em desenvolvimento se desenvolva exatamente como o mundo ocidental e que o Oriente reconheça a superioridade do Ocidente. Falamos sobre respeitar outras culturas, sobre diversidade e diferenças, mas o que realmente queremos é que todos no mundo comprem nas mesmas lojas, desejem ter as mesmas coisas, que pareçam, falem, ajam e vistam-se da mesma forma. Muito do que chamamos ‘diferença’ é mera rotulagem. Mudamos a cor e o número do modelo, mas as peças são idênticas.

Basta entrar em qualquer supermercado e ver que a variedade de produtos é impressionante e os americanos adoram isso – pelo menos os que não estão tão gordos a ponte de não conseguir andar pelos corredores. Os outros estão processando as empresas de alimentos por terem se tornado obesos. Observe bem de perto e veja que os vinte tipos diferentes de massa diferem apenas na cor e recheio. Todas as refeições prontas são feitas com os mesmos aditivos, produtos químicos e ácidos graxos trans-fat e a partir dos mesmos animais criados nas fazendas que mais parecem fábricas: frangos, porcos, vacas e ovelhas. Os produtos que estão fora de estação são transportados ao redor do mundo. Em todo lugar o alimento é plantado, criado ou processado da mesma forma e tem o mesmo gosto.

Vocês já sabem de tudo isso. Sabem que todo dia mais espécies de animais e insetos se tornam extintos. De que um pedaço da floresta tropical – da sua floresta – é destruído. De que um pequeno produtor ou uma loja independente vai a falência. Aliás não só um, mas centenas; não centenas, mas milhares. De que o deserto de Gobi avança 50 quilômetros por ano. Mudança climática? Mas que mudança climática? Basta me chamar de George Bush.

Muitos de nós nos conscientizamos de que a diversidade de nosso mundo está gravemente ameaçada e alguns de nós que não trabalhamos para a Coca Cola ou para a Monsanto, nos damos conta de que a diversidade é importante, que não é supérflua. Que ter micos e jaguares ou vinte mil espécies de borboletas, recifes de coral e ursos polares ou calotas polares que não derretam ou tantas espécies de insetos que seria impossível contá-las todas não é apenas uma coisa ‘legal’. Não é apenas um fato ‘curioso’ ou ‘exótico’ a existência de tribos que sabem enfrentar ambientes inóspitos com êxito. Tanto êxito que chega a ser uma ofensa para o Banco Mundial, que por sua vez tenta varrer essas culturas da face da terra, com dinheiro e em nome do progresso e do desenvolvimento. Um comentário como este pode fazer com que você seja acusado de sentimental, paternalista ou até de terrorista, mas por que todos devem seguir o exemplo do Ocidente e será que é desejável que o façam? Não podemos esquecer como o Ocidente, mais especificamente os Estados Unidos, propaga sua própria forma de progresso. Tudo no Ocidente está ligado à ideia de ‘coerção para comprar’, que vem disfarçada de ‘opção do consumidor’. No que diz respeito ao ‘progresso’ (e coloco isso entre aspas de propósito), a pressão é ainda maior. Robert Mugabe prejudicou enormemente o Zimbábue, mas será que fez mais mal que o FMI e o Banco Mundial, cujo único papel parece ser o de convencer fazendeiros africanos a desistir de plantar alimentos para seu próprio povo para vender suas colheitas nos tais ‘mercados abertos’ – i.e. bem baratinho para o Ocidente.

Independente da moral discutível dessa transação, substituir a diversidade dos pequenos plantios por monoculturas de administração global é uma péssima ideia. O planeta necessita da diversidade. As pessoas precisam da diversidade. O que estamos fazendo do ponto de vista ambiental e em nossa agricultura, que está diretamente relacionada com o meio ambiente e o clima, é impor a monocultura no Terceiro Mundo e nos países em desenvolvimento, simplesmente porque é o que nos convém. Não convém às pessoas ou ao planeta. Não sei porque os países ricos do mundo não pagam ao Brasil para proteger a floresta tropical. Ela é mais do que um Patrimônio da Humanidade. É essencial para a estabilidade futura de nosso planeta, de todo nosso ecossistema. A floresta amazônica é um recurso imenso, mas é um recurso que não deve ser explorado. Seu presidente está fazendo o melhor que pode, mas assim como outros líderes, ele pensa no progresso apenas nos termos definidos pelo Ocidente rico. E quem poderá culpá-lo por pensar assim? Antes das eleições de 2002, quando Lula foi eleito, o FMI e o Banco Mundial insistiram para que o Brasil mantivesse um superávit orçamentário de 3,5%, apesar do país precisar desesperadamente de investimentos em saúde, educação e infraestrutura. Eu não sei por que um grupo de prósperos bandidos de Londres e Wall Street se acha no direito de ditar como um país deve se comportar – especialmente quando os Estados Unidos são os maiores devedores – US$ 2,2 trilhões – e, por incrível que pareça, não tem qualquer regime econômico austero imposto por estrangeiros.

A forma como vemos e pensamos sobre nossa economia, sobre capitalismo, desenvolvimento e progresso, acima de tudo sobre como tratamos nosso único lar – esse pequeno planeta azul girando no espaço e no tempo – tem que mudar. É aqui que voltamos à questão dos nossos amigos Wordsworth e Coleridge, suas Baladas Líricas e a arte. Em uma economia mundial que depende de separações, temos a arte, que nos pede para fazer conexões. O presidente Bush faz de conta que as emissões nos Estados Unidos nada têm a ver com a seca na África; que os hambúrgueres do McDonald’s não têm relação com o desmatamento. O fato de um cidadão americano usar oitenta e oito vezes mais recursos que um cidadão em Bangladesh nada tem a ver com o esgotamento ambiental e com a pobreza no Terceiro Mundo.

Como pode, então, a leitura de um poema, a apreciação de um quadro ou a encenação de uma peça nos ajudar a ver as coisas de outra maneira? Não é apenas uma questão de fazer as conexões óbvias. É justamente a possibilidade de juntar coisas que não são obviamente correlatas. É isso que a arte faz. Algumas pessoas se enganam e creem que para ser relevante, a arte tem que ser diretamente política – que o tema é tudo que importa. Isso é um erro. Não é uma questão do tema desta ou daquela peça, mas sim do que a arte É, de sua natureza. Uma obra de arte, seja em livros, quadros, peças de teatro, não é SOBRE alguma coisa, mas É alguma coisa. E o que ela É conecta o que foi separado. Pense em uma obra de arte que signifique alguma coisa para você. Agora deixe esse pensamento repousar em sua mente por uns momentos. Você verá que ocorreu uma união – coisas se juntaram – para permitir que sua própria mente se refaça de outra maneira. Às vezes dizemos: ‘nunca pensei nisso’ ou ‘nunca me senti assim’ ou ‘isso deu sentido à minha experiência’ ou ainda ‘isso me fez rir, aquilo me fez chorar’. Essas emoções, estes entendimentos dos fatos, essas realizações acontecem quando o que foi separado é novamente unido. O papel da arte é pegar diversos elementos díspares e fundi-los em novas unidades. Isso não é uma imposição – afinal arte não é colonialismo – é uma revelação, é a sensação de que as coisas parecem o que são. Não me entenda mal. Não acredito na realidade estática e objetiva que há por aí. Acredito em mudança, na transformação dos padrões energéticos que apenas começamos a perceber na natureza e nas moléculas, átomos e DNA de nossos próprios corpos.

Nada é sólido; nada é fixo. Porém esse movimento e essa energia não são caóticos. A ciência está apenas começando a revelar os padrões, transformações e conexões que pareciam impossíveis e implausíveis. A arte entende esses padrões, transformações e conexões de forma intuitiva, pois é exatamente assim que ela também funciona. Acredito que um dos motivos pelos quais sempre nos voltamos para a arte e nunca desistimos de continuar criando, é justamente porque através dela reconhecemos a qualidade intrínseca da vida – que tudo está conectado.

Esta qualidade intrínseca é pertinente ao que temos de mais pessoal e ao que nos é aparentemente remoto. Que a lua influencia as marés é maravilhoso! Que a cobertura de uma floresta tropical possa afetar a temperatura nos polos terrestres apenas demonstra o quanto a Terra está em sintonia com si mesma. Os animais sabiam que um Tsunami se aproximava. A forma como me comporto na Inglaterra terá consequências tanto para os que estão próximos de mim quanto para vocês, tão longe.

Podemos começar a entender isso através de fatos e números e seria bom se o fizéssemos, mas para realmente podermos entender nosso papel na trama da vida não adianta fazer especulações intelectuais. Temos que usar nossa imaginação. Ciência, história e política são de grande importância, mas sem uma conexão criativa, tudo acaba ficando em categorias separadas.

As pessoas com quem falo afirmam que não conseguem entender toda a informação, por vezes conflitante, que recebem pela televisão ou jornais. Ao invés de se sentirem mais bem informadas, esse fluxo contínuo de fatos e números não correlatos, além de matérias horripilantes, sobre desastres e guerras, acaba deixando as pessoas anestesiadas e indefesas. Isso porque tudo acontece na parte exterior e a vida não pode ser compreendida por seu exterior, mas de dentro para fora. A arte, por trabalhar sempre de dentro para fora, nos ajuda a reganhar um sentido ao mesmo tempo de discriminação e de controle. Quando nossa imaginação está ativa, quando estamos em contato com aquilo que nos conecta uns aos outros, com o passado e o planeta, aí não só mudam nossas prioridades, mas como também criamos uma base mais sólida para avaliar prioridades alheias – especialmente no caso de nossos governos e empresas, que querem ditar como devemos viver.

A vida interna está sempre sendo ameaçada, tanto por aqueles que afirmam que ela não existe, mas também por aqueles que dizem que isso não tem importância ou que a vida interior só está disponível para os que vivem em países ricos e que já têm tudo que queriam da superfície dourada da vida.

A vida interior é importante sim. É parte de nossa identidade. Se ela é fraca e murcha, não teremos força para nos defendermos das manipulações da mídia ou dos mercados. Para muitos, a religião vem oferecer uma realidade alternativa, porém com valores iguais àqueles defendidos pelos mercados livres e, apesar de não acreditar que a arte sirva de substituta para a religião, acho que ela tem trabalhado dobrado para preencher esse espaço. Buscamos quadros, livros, música e performances porque precisamos que alguma coisa alimente nossa alma. Desculpe se a palavra alma possa parecer antiquada, mas não há outra palavra melhor.

Não devemos, porém, acreditar que basta confortar nossa alma de vez em quando, para depois voltarmos alegremente para o mundo que estamos destruindo em nome do progresso e do livre comércio. A arte nos consola, sem dúvida, mas também confronta. O paradoxo da arte é justamente que ela acalma e dá energia. Ela para os ruídos e a balbúrdia de nossas vidas modernas e estressadas e nos convida a concentrarmos nossa atenção de maneira diferente. Quando concentramos nossa atenção de outra forma, começamos a questionar as coisas diferentemente.

Sempre que encontramos tempo para a arte, estamos criando tempo para um sistema de valor diferente. Há uma infinidade de coisas na arte que incomoda o status quo; não se consegue arte pronta para o consumo: o artista levará o tempo que precisar. Não é possível cancelar o contrato e arranjar outra pessoa para fazer o trabalho; não é possível adicionar hormônios de crescimento; não é possível mudar a fábrica para a Coréia; não é possível prever o mercado ou a demanda do mercado; não se pode fazer o custeio, cortar mão de obra ou renovar o modelo. O capitalismo não pode controlar a arte de nenhum modo e é por isso que tenta desesperadamente fazer justamente isso, seja tratando arte como um commodity, esperando arruinar os próprios artistas com excesso ou muito pouco dinheiro, ou tratando-a como algo trivial, chamando-a de artigo de luxo, dizendo que não tem importância, que nada tem a oferecer, que está falida, que não tem sentido, que é um desperdício de tempo e dinheiro.

Mas o que há de peculiar na arte é que ela permanece, não importando como é tratada. Alguém está sempre escrevendo um poema, pintando um quadro ou encenando uma peça. O impulso é por demais forte. A energia é imensa e com certeza não é um impulso ou energia das nações ricas. Desde o início dos tempos, as pessoas criavam formas de arte, até nas mais difíceis circunstâncias, e continuam a fazê-lo. Cantamos, contamos histórias, pintamos cores e criamos formas porque queremos – não porque o Banco Mundial ou o FMI mandou ou porque governos deram incentivos, mas porque não sabemos fazer diferente. Criamos a partir de nossos DNAs. Com certeza não é um capricho. Faz parte do que somos. Pare e pense em um poema – o item mais inútil do planeta. Será? Na balbúrdia das novas formas de falar, os anúncios, os jargões, os discursos e na monotonia dos políticos, um poema usa palavras que são exatas que oferecem sentido e musicalidade ao mesmo tempo. A poesia, aqui incluo qualquer texto poético, seja drama ou ficção, busca uma linguagem para o que somos; uma linguagem rica e complexa, que por vezes pode ser simples em sua superfície, mas que nos obriga a entender nossas sensações e experiências, conectando-as a um mundo mais amplo. Um poema é um ato privado, seja na sua criação, leitura ou declamação, mas não é um ato passivo. Sua vitalidade pode ser chocante, nos arrancando de nossos estados sonâmbulos, tão importantes para a vida moderna. Estar plenamente acordado pode ser muitas vezes intolerável. Mesmo assim, quando lemos um poema, não reagimos apenas a ele, mas também à nossa porção recém-despertada.

Esta capacidade estimulante de um poema nos lembra que a linguagem tem um trabalho a fazer. E urgente!

Ler poesia ou ouvir uma declamação afasta os ouvidos de tons dissonantes, colocando-os de volta em contato com os verdadeiros ritmos de nossa própria linguagem e com as possibilidades de nosso próprio discurso.

Palavras começam na boca antes de alcançarem a página e sempre que nos envolvemos com um poema, alguma coisa de sua linguagem fica conosco na próxima vez que falarmos. Passamos essa coisa adiante. O traço pode ser leve, mas até mesmo um leve traço de poesia se torna um antídoto para o não-falado, para as novas falas que nos cercam.

A linguagem de um texto poético é autêntica; a emoção é autêntica. O poema é honesto e tem uma forma curiosa de nos ensinar a detectar a mentira. Poemas são detectores de mentira. Farejam o falso e o suspeito. Têm que fazer isso para poderem ser criados. Todos que já trabalharam criativamente conhecem aquele momento torturante em que sua própria obra chama sua atenção por você estar querendo trapacear. Vivemos num mundo onde todos tentam enganar de uma maneira ou de outra, menos os poetas e artistas, porque simplesmente não podem tapear a si mesmos nem a suas obras. Escapar impunemente significa sair de mãos abanando.

Detectar mentiras começa conosco e a arte tem uma forma singular de fazê-lo. Primeiro porque ela exige que sejamos melhores do que somos, para que possamos estar à altura da energia criativa de um poema ou obra de arte, na forma que for.

A verdade essencial de um poema, sua intenção, expressão, sentido e mistério, não aceita mentiras, seja a mentira para si mesmo ou para os outros. Isso é doloroso. O poema, nas palavras de Dante, ‘coloca em versos coisas difíceis de serem pensadas’.

Essa dificuldade em pensar não é uma questão de resolução intelectual de um problema. É a cura do indivíduo e, desse modo, a política do corpo. Para fazer as mudanças urgentes que o mundo precisa, temos que olhar para nossos próprios corações sombrios – cada um de nós, em seu próprio espaço. É fácil, e às vezes certo, botar a culpa em George Bush, mas e quanto a nós? Quais são nossas desculpas, nossas concessões? Quando olhamos um poema, lembramos que há outras formas de ver o mundo e que essas ‘outras formas’ são essenciais para que ocorra uma mudança, de dentro para fora.

William Carlos Williams colocou a coisa da seguinte forma: ‘É difícil encontrar notícias em um poema, mas homens morrem todos os dias por não ter acesso ao que pode ser encontrado na poesia.’

Coleridge falou sobre como um poema poderia ‘ajudar a manter o coração sensível ao amor e à beleza’.

O coração – nesse caso me refiro à nossa vida interior – não pode ser mantido vivo num regime de reality show, imprensa marrom e novelas. Por incrível que pareça não são as privações, mesmo as mais rigorosas, que matam o coração, mas sim a banalidade.

Precisamos da riqueza da linguagem que a arte nos oferece. Precisamos de parábolas e paradoxos, pois nosso cotidiano se torna mais complexo a cada dia e não podemos nos defender apenas enfiando nossas cabeças nas areias da ignorância e do sentimentalismo. O refrescante ‘tapa na cara’ que Worsdworth chamou de ‘mundo sólido e real das imagens’ pode vir a chocar depois da falta de realismo que nos é apresentada como ‘vida real’. A arte não é uma fantasia, nem escapismo. Precisamos do mito. Necessitamos de invenções. Carecemos das numerosas possibilidades metafóricas e alusivas que a arte nos oferece e que diz respeito à multiplicidade e à variedade e não à mesmice entorpecente do produto industrializado, seja ele um bem ou entretenimento.

Você não irá encontrar variedade na cultura empresarial, mas com certeza encontrará na arte e na natureza, porque as imaginações de homens e mulheres e de seu ambiente natural estão intimamente ligadas. Partimos esses elos e continuamos a parti-los, mas eles são genuínos e permanecem presentes. Espírito e terra, nossas raízes e nossos sonhos. Por que aceitamos passivamente uma existência que ameaça essas coisas como nunca antes?

Aqui, hoje, em Paraty, pode-se dizer sim ou não a uma ameaça que vai estragar nosso mundo natural e nossas relações com o mundo natural. A Petrobrás quer lançar os detritos, que ela draga do solo para sua nova plataforma na costa, aqui na baía. Eles estão cientes que esse ato vai destruir o plâncton que é a base da cadeia alimentar marítima e abalar o frágil e equilibrado ecossistema que funciona tão bem entre a terra e o mar aqui.

Eles viram e falam sobre empregos – empregos temporários – e falam sobre economizar. Despejar isso em Paraty é a opção mais barata. Você não pode sair por aí destruindo o mundo para “economizar” dinheiro. Temos que usar nossas imaginações. Temos que nos levantar e dizer não à Petrobrás, e ajudá-los a encontrar uma alternativa. Aqui em Paraty, já existe uma nova fonte de renda e empregos – este festival, esta celebração da imaginação. Vamos levar isso mais longe e usar este festival para fazer a Petrobrás mudar de opinião. Não podemos permitir que empresas destruam em nome de um suposto progresso – despejar suas sobras em Paraty não é progresso; é vandalismo. Digam isso a eles e usem esse momento, essa energia, para parar a destruição.

Cá estamos, pensando sobre a frágil ecologia do mundo físico, cuja continuidade é vagamente compreendida como uma garantia de nós mesmos. Vamos pensar também sobre a frágil ecologia do mundo imaginário – os rios e as árvores e os mares e estrelas que sustentam nossa própria vida. O deserto avança a cada dia.

Sei que ciência e tecnologia – das quais a Petrobrás, como a Shell, como a Esso, são partes – nos livraram de muito trabalho forçado e trouxeram enormes benefícios para nosso mundo, mas ciência e tecnologia também poluíram nosso planeta, desestabilizaram nosso clima, e distanciaram ricos e pobres mais do que em qualquer outro momento da história. Agora, os cientistas sugerem que nossa única esperança é colonizar o espaço antes que destruamos a nós mesmos.

Nossa única esperança é despertar nossas imaginações antes que destruamos a nós mesmos – e é isso que a arte pode fazer.

Precisamos de ativistas e de artistas. Às vezes ambos podem ser encontrados em uma única pessoa. O que é certo é que o ativismo precisa da inspiração que vem da arte. É certo sentir raiva do que estão fazendo em nosso planeta em nome do progresso e da democracia, mas se queremos fazer mais do que aparar arestas, mais do que remendar a situação, precisamos de uma visão que políticos não podem nos oferecer. Precisamos de uma visão de nós mesmos como pessoas extraordinárias em um planeta extraordinário. Pessoas com uma alma, assim como um corpo. Pessoas que possam ver além do dinheiro e do poder. Pessoas que, como Wordsworth disse, ‘possam ver a vida nas coisas’.

O dia que conseguirmos isso será o dia que nos tornaremos plenamente humanos. É essa humanidade plena que a arte vem tentando despertar em nós.

A arte vai mais fundo do que as terminações nervosas superficiais da cultura popular. Ela penetra naquela parte de nós que nos pertence e que pertence a outros, não mecanizada, mas pacificada, socializada, integrada e também selvagem, estranha e corajosa, de voz em voz, de mãos dadas, através dos tempos, tratando do destino, do medo, das perdas, da esperança, da renovação, de mudanças, de conexões, de todas as relações frágeis e sutis entre homens e mulheres, seus filhos, seu país, todas as coisas que não podem ser medidas ou entendidas pelo Banco Mundial ou por Produto Interno Bruto.

A arte viaja com pouca bagagem, passa tranquilamente pela imigração e alfândega e pelos controles monetários, para conversar conosco sobre questões do espírito e do coração, como sempre desejamos; para imaginar um mundo que não seja dominado por números; para encontrar nas cores e na poesia e sons uma equivalência para nossos mais profundos sentimentos. Uma linguagem para o que somos.

O que quer que imaginemos, podemos tornar reais. Tudo começa com uma ideia, uma certeza, um sonho. A forma como vivemos hoje não é a única possível e, apesar da arte não poder salvar o planeta, ela pode libertar, em cada um de nós, os desejos e verdades que ficaram enterrados sob a propaganda da vida moderna.

O dever é agir sobre isso o que a arte pode libertar. E esse dever é nosso.