O Compositor Solo
Na difícil tentativa, provavelmente inútil, de ser simples e objetiva na expressão de minha preferência estética, diria que valorizo e identifico-me especialmente com a obra em que o criador consegue (repito: consegue) fazê-la como um espelho de si próprio. Em síntese, admiro a obra de arte que qualifico como “sincera”. Ao considerarmos que cada ser humano é uno no que se refere ao conjunto de sua personalidade, ou seja, somente ele mesmo possui a sua conjunção genética, sua história e experiências pessoais, seus valores e princípios, seu caráter, sua visão e compreensão da vida etc., logo, ele naturalmente será convincente e, por que não dizer (?), honesto em sua expressão artística caso possa fazer de si mesmo a matéria prima de seu trabalho. Nesse caso, preocupar-se em ser original em relação ao objeto artístico que faz nascer torna-se desnecessário, pois ele assim o será incondicionalmente. E mais, chego a pensar que a realização pessoal mais profunda – pessoal e artística – deva acontecer, talvez, somente nessa condição.
Ao me referir à personalidade de um criador, é fundamental entender que nesse conceito está inserido o seu consciente, e na mesma medida, ou até em maior proporção, o seu inconsciente. Creio estar aqui, aliás, um dos elementos que mais distinguem os criadores artísticos: uns compõe o objeto com vistas a que seja arte somente pelo que conscientemente desejam, ou seja, por uma intenção explícita a si próprios. Nesse caso citaria aqueles criadores, por exemplo, preocupados primeiramente em atender a uma ideologia política, princípio escolástico, filosofia de vida, expectativa do suposto público ou, conforme os comuns apelos do mundo globalizado, às exigências de mercado. Dentre esses estímulos citados, é fato que nem sempre se percebe uma linguagem distinta, um estilo próprio do criador. Diferente disso, outros compositores deixam-se levar principalmente por uma condição mais profunda de si mesmos, isso é, seguem como meta confiável o que “grita” ou “cochicha” o seu eu inteiro (incluindo assim, provavelmente, uma porção maior de seu inconsciente). Estes, da mesma forma que criam uma obra, são dirigidos por ela, pois nesse trabalhoso processo de parto está envolvido o mais íntimo dos íntimos, o querer e o não querer, a dúvida, o desespero, o sonho, a disputa entre o que se é, o que se foi, e o que se deseja ser. O objeto assim criado não é fruto somente do que se quer, mas também do que se pode, conforme enfatizei no início. Lembremos que há sempre em nós compartimentos bem trancados que não temos condições emocionais para explicitar seu conteúdo, até a nós mesmos, salvo em condições de extrema excepcionalidade, nas quais é possível lidar com ele direta ou indiretamente, como pode ser o caso de um momento mágico de criação artística.
Em tempos em que nossa porção razão é tão requisitada, e nossos outros lados mais ou menos marginalizados, escrever uma música que seja “reflexo das entranhas” (expressão do professor, compositor e regente Marco Antonio Ramos em sua defesa de tese de Doutorado) pode ser considerado por alguns como um procedimento heróico, e certamente uma heresia para outros.
De minha parte, acredito ter assumido o atendimento a este princípio, o de ser sincera e honesta comigo mesma no processo criativo, quando me conscientizei dele e de seu valor para mim. Estou convencida de que esse procedimento se trata menos de uma decisão, mas muito mais de um processo talvez natural, de amadurecimento pessoal, de descobertas e reflexões relacionadas à realidade interior e do cotidiano exterior, de confiança na própria potencialidade, de elaboração do que significa para si o papel do artista criador e, claro, da reação do ouvinte a essa autenticidade. Desse modo, creio estar atendendo passo-a-passo esse objetivo estético em minha carreira como compositora, desejando estar cada vez mais apta à autenticidade comigo mesma.
Concretamente falando, no meu processo de criação musical atendo inicialmente ao que chamo de lado racional, do conhecimento e planejamento propriamente ditos, quando reflito e decido materiais, estruturas, parâmetros, limites e objetivos da futura obra. Tal e qual um arquiteto ou engenheiro ao idealizar uma casa, por exemplo. Num segundo momento – que sempre sinto como bem mais complexo e difícil – procuro interromper o processo “científico” de pensar, refletir, analisar, considerar, concluir etc., para entrar no “país das maravilhas”, onde há pouco espaço para a lógica, para questionar o padrão pré-estabelecido, para critérios de julgamento, mas quase que exclusivamente para os ditames de mim mesma que pouco ou nada conheço. É o momento de arremeter-me audaciosamente ao instinto ou intuição, e acreditar em minha sabedoria e beleza sui-generis. Para tanto é preciso anotar as idéias sonoras rapidamente, tão rápido quanto se possa para apreendê-las tal como aparecem em sua forma pura e original. Num terceiro momento ressurge o “cidadão civilizado” para avaliar e selecionar o que fica e o que sai de todo o material jorrado no momento anterior de liberação meio sem freios, isso é, deverá tomar ou ajustar o que melhor atende o plano inicial do que se pretendeu fazer.
Vem sendo dentro dessa forma “ternária simples” que venho me dirigindo para atender o interesse em revelar em minhas músicas as minhas duas faces “yin-yang” que juntas dizem quem sou e para que sou.
Para finalizar, deixo abaixo o que redigi no programa de um concerto solo que tive em Zurique em 1990 o que, penso, bem traduz meu pensamento estético: “Arte é sobretudo conseqüência. Observo e assimilo o que somos, e disto cresce a necessidade de expressar o que também vivi”.
Silvia de Lucca
NOTA: Esse texto é uma nova versão de um enviado ao professor e compositor carioca Ricardo Tacuchian – então presidente da Academia Brasileira de Música – na época em que ele realizou uma pesquisa com compositores brasileiros.
FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em abril de 2006 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br