O que é que a Brasileira tem?!

Conceber, considerar e avaliar a música brasileira em toda a sua amplitude e diversidade é, justamente por conta disto, uma tarefa especialmente difícil, contudo, tendente a fortes mudanças: já há vários anos vêm ocorrendo no país de forma incrivelmente crescente o interesse, planejamento e organização de estudos vários sobre as composições brasileiras como nunca visto. A mobilização disso significa localizar, catalogar, quantificar, registrar, arquivar, revisar, estudar e divulgar os achados sobre a nossa música, o que tem tomado uma proporção, inclusive qualitativa, acredito inesperada. Nossos pesquisadores em música, espontaneamente, têm buscado temas nacionais para desenvolverem seus trabalhos. Instituições são fundadas ou direcionadas para a impressão, gravação e distribuição de obras brasileiras, inclusive no exterior. Encomendas de obras aos compositores nacionais têm aumentado em interesse e quantidade. Execuções comentadas de música brasileira tornaram-se habituais, mesmo em gravações para a grande mídia, inclusive algumas rádios, ou programações de rádios e TVs, limitaram-se exclusivamente ao repertório nacional. Partituras, material fonográfico, concertos, shows, cursos, aulas e palestras sobre diversos gêneros da música que se faz e que se fez no Brasil chegaram às Universidades. Acredito que seguindo esse ritmo, não demorará para que haja uma maior consciência, uma opinião segura e, quiçá, um orgulho nacional a respeito do que produzimos musicalmente, fato este que por ora ocorre principalmente no meio formado por aficionados. 

Parece ser consenso internacional que nosso público compreende em geral um povo muito musical, que espontaneamente, no seu cotidiano, justifica o ditado popular: Quem canta [ou ouve música] seus males espanta. Na maior parte das vezes sem consciência desta sua característica, e sem a reflexão que normalmente é acrescentada à vivência musical principalmente por meio da educação formal (diferente de muitos países, não temos música no currículo da maioria das escolas), poderíamos generalizar dizendo que o brasileiro tem a música no sangue, mas ainda não a tem na cabeça.

No entanto, o primeiro passo foi dado, começamos enfim a mapear os nossos feitos e a conhecer a nós mesmos, entendermo-nos como unidade, condição fundamental para nos unir em um interesse comum e buscarmos com menor dificuldade os objetivos coletivos. O próximo passo, que possivelmente ocorrerá como conseqüência natural, será envolver-nos no processo de globalização musical de modo mais consciente, atuantes e fortalecidos, ou sendo menos otimistas, sabedores do que estamos perdendo e poderíamos ganhar. 

A música brasileira não deverá continuar a ser, ao menos sob nosso consentimento, limitadamente classificada no seu todo como étnica, como às vezes testemunhei, simplesmente por não ter sua origem nos poucos países de repercussão mundial como detentores do poder econômico. Temos sim a nossa música étnica, assim como temos a popular e também a clássica – subdivididas cada uma dessas em variados estilos, gêneros, linguagens – todas originadas desde que aqui se juntaram com nossos índios o branco europeu e o negro africano, e depois, sem cessar, outros mais. Ou seja, temos a nossaS músicaS há muito sendo semeadas e forjadas. Os resultados começaram a ser mais definidos a partir do século XVIII, através do aparecimento de um bom número de compositores, de edições e registros de uma parte de obras musicais e documentos, e da fundação de instituições especializadas. 

Sobre nossaS músicaS, já ocorreu perguntar-me qual seria entre elas o elo comum, numa tentativa de confirmar uma suspeita obtida ao residir no Velho Mundo entre 1989 e 1993. Durante este período, com a sensibilidade e percepção ampliadas ao freqüentar diversos eventos musicais internacionais, sentia que a música brasileira caracterizava-se de um modo peculiar mas, qual seria ele? Eu nada captava diretamente relacionado à nossa linguagem, à técnica composicional, ou aos elementos musicais, que fosse significativamente distinto no universo. É sabido, por exemplo, que a música brasileira normalmente contém o elemento ritmo bem valorizado e desenvolvido, contendo inclusive algumas células rítmicas próprias, mas além disso estar presente também em outras culturas, eu percebia não estar aí a nossa identidade musical, o que seria de um grande simplismo diante do todo que representa. 

Uma tarde, conversando informalmente sobre as diferentes características dos diferentes povos com um compositor suíço, ao citar a palavra ENERGIA, creio ter tangenciado a resposta da pergunta que naquele país eu havia esboçado: o que caracterizaria como um todo a diversidade da música brasileira? Num repente, senti que aquela palavra tocara-me magicamente ao provocar uma profunda satisfação, pois tirava de mim uma dúvida admitida na época como existencial.  Alguns anos depois, ao ler o livro de Leopold Stokowski traduzido como “Música para todos nosostros” (1954), em que dedica dois capítulos aos temas “El alma de la música” e “El corazón de la música”, certifiquei-me tranqüila que a palavra “energia” não era descabida ou excessivamente pessoal para qualificar nossa música, não importando qual seja sua especialidade. O mitológico regente Stokowski (1882-1977) contribuiu para que eu resolvesse quase que uma charada, qual seja, a caracterização de nossa música está no conteúdo, isto é, em O QUE ela expressa e não no COMO se expressa.       

Silvia de Lucca

 

FONTE: Esse artigo foi adaptado do original escrito em maio de 2005 para a Coluna ISCAS MUSICAIS, do site www.lucianopires.com.br, tornando-se posteriormente o seguinte Portal: www.portalcafebrasil.com.br